Uvas resistem ao solo desértico graças a práticas sustentáveis centenárias Ao aterrizar no aeroporto internacional de Mendoza, na Argentina, a primeira visão do visitante não surpreende: panfletos e outdoors de vinícolas renomadas. Mas, ao seguir para as “bodegas”, o viajante encontra bares pitorescos, o terreno árido e pequenas casas cercadas por vinhedos. É difícil imaginar que este lugar produza quase 1 bilhão de litros de vinho anualmente, consolidando-se como o principal polo vitivinícola do país.
Leia também
Quem são os maiores produtores de vinho do mundo?
Brasileiros investem em produção de vinho orgânica e artesanal no Chile
Mendoza responde por 81% da produção de vinho da Argentina. Segundo o Instituto Nacional de Vitivinicultura (INV), a província é a responsável por 71,4% da produção de uva do país, cobrindo 142.780 hectares. O malbec é o carro-chefe: entre janeiro e outubro de 2024, ele representou 63,6% das exportações de vinhos.
A relação da província com a viticultura remonta ao século XVI, quando os primeiros colonizadores espanhóis desembarcaram com mudas de videiras. Desde então, a prática foi se aperfeiçoando, com a chegada, nos séculos XIX e XX, de imigrantes italianos e franceses, que levaram técnicas modernas de vinificação, aumentaram a qualidade do vinho argentino e o fizeram ganhar fama no cenário global.
O vocabulário vitivinícola é como gíria popular. “Aqui, dizemos ‘mendocino de la cepa’ para destacar o orgulho de ser nascido e criado em Mendoza”, diz Walter Leal, motorista que conduz turistas por vinhedos e olivais. O consórcio entre uvas e oliveiras atrai visitantes com seu encanto olfativo e saboroso, em uma sinergia entre duas culturas agrícolas que moldaram a economia e a gastronomia local.
Em Luján de Cuyo, onde os vinhedos são plantados em uma faixa entre 800 e 1.200 metros de altitude, as conversas giram em torno de maturação, fermentação e varietais. “Se estiver interessado, tenho 400 garrafas de malbec da minha época de produção”, diz o dono de uma loja de conveniência. Em Mendoza, mesmo sem grandes vinícolas, é comum a criação de um quintal produtivo.
Mendoza é responsável por 81% dos vinhos produzidos na Argentina. A província engarrafa 1 bilhão de litros por ano
Denise Saueressig/Globo Rural
A alemã Meikel Schulz apaixonou-se por Mendoza e comprou uma chácara após um intercâmbio. Ela produz pinot noir e azeitonas arbequinas. “Cuido das uvas e olivais como filhos”, diz. A casa de Meikel é abastecida pela água da montanha, que é coberta de neve nos meses de frio, como toda a província. As séquias, canais de irrigação criados pelos huarpes (etnia indígena que habitou a região), garantem a produtividade do malbec na área, onde chove apenas 180 milímetros por ano. A província tem uma lei de direito à irrigação desde 1974 e elege um “tomero”, operador responsável por abrir e fechar as comportas para distribuir a água de maneira eficiente.
Para quem não está familiarizado com o sistema de retenção de água de Mendoza, a presença de valas numa rua da área urbana ou rural pode parecer perigosa. Já os mendocinos, que não vivem sem a tecnologia ancestral, riem quando alguém pergunta sobre as canaletas laterais. A secular cisterna é a engenharia que garante a boa produtividade do malbec – e o futuro da agricultura em Mendoza.
A consciência é fruto do medo de faltar água, já que os recursos hídricos que abastecem a província resultam do degelo da Cordilheira dos Andes. Em meados de 2010, a região passou por um período de seca e altas temperaturas que interrompeu a formação de neve. Sem degelo, a produção agrícola, em especial de vinhos, padeceu, e muitos produtores conviveram com quebras de safra, das quais se recuperaram há apenas cinco anos. A secular cisterna é a engenharia que garante a boa produtividade do malbec – e o futuro da agricultura em Mendoza.
A consciência é fruto do medo de faltar água, já que os recursos hídricos que abastecem a província resultam do degelo da Cordilheira dos Andes. Em meados de 2010, a região passou por um período de seca e altas temperaturas que interrompeu a formação de neve. Sem degelo, a produção agrícola, em especial de vinhos, padeceu, e muitos produtores conviveram com quebras de safra, das quais se recuperaram há apenas cinco anos.
Mendoza tem ainda uma autarquia independente do governo da província exclusivamente para a gestão da água, o Departamento General de Irrigación (em espanhol). Nele, o tomero eleito trabalha no abre e fecha das comportas da província em horários pré-determinados para gerenciar o recurso hídrico.
infografico-vinhos-mendoza-argentina-gr-467-revista-globo-rural-abril-2025
Daniel Neves
“Com cepas emblemáticas, os mendocinos estão atentos à água. Depois de 15 anos sem degelo, vive-se um momento promissor. Nos últimos cinco anos, as safras foram recordes”, relata Santiago Ribisich, da vinícola Antigal, primeira bodega de Maipú a se consagrar como a melhor do “Novo Mundo”. Mendoza gera US$ 300 milhões por ano com vinho. Com ou sem crise na Argentina, o enoturismo atrai visitantes de países como Chile, Brasil, Estados Unidos e França.
A Antigal, administrada por uma família chilena, produz 1,5 milhão de litros anuais e exporta para 60 países, sendo os EUA o maior comprador (50% das vendas). Segundo dados mais recentes, Mendoza tem 876 bodegas. Em qualquer esquina, veem-se placas de “vende-se vinho”. Essa enologia mendocina faz parte da identidade local.
E a ciência do vinho começa antes da oxigenação da bebida na taça e de ela exalar os aromas frutais e amadeirados. É no campo, em especial no mês de março, que a magia acontece. Todos os anos, nessa época, produtores reúnem-se no centro de Mendoza para rogar à Nossa Senhora da Carrodilla, a virgem protetora dos vinhedos.
O pedido da oração é unânime: uma boa safra, com água suficiente para irrigação das vinhas. E eles agradecem pelo degelo da Cordilheira por ser dádiva às 37 cepas de malbec já plantadas na região. Há música popular para entoar à reza:
“Virgen de la carrodilla patrona delos viñedos/Esperanza de los hijos quehan nacido junto al cerr/Los que hanhundido el arado y han cultivado susuelo/Te piden que los ampares patro-na de los viñedos”
A colheita deste ano, que começou no fim de fevereiro, deve se estender até abril. As mudanças no calendário de produção dependem do clima, mas, em geral, Mendoza mantém um padrão: centenas de vinícolas mantêm ações de sustentabilidade e exigem dos produtores menores que fornecem às uvas para o vinho a mesma dedicação.
A maioria dos vinhedos usa adubação biológica, técnicas regenerativas e colheita manual. A Tempus Alba, vinícola de Maipú, investe em micropropagação in vitro para multiplicar as melhores cepas de malbec. A técnica pioneira permite a reprodução de mudas geneticamente idênticas, garantindo uniformidade e sanidade. “A tecnologia oferece vantagens, como a rápida multiplicação de plantas, independência das condições climáticas e a possibilidade de produzir mudas livres de patógenos”, detalha Martina Vitali, guia da vinícola. Na Tempus Alba, são quase 13 hectares de videiras, com 8.000 plantas irrigadas por gotejamento.
Vinhos de Mendoza
A estrutura que sustenta as videiras é de uma espaldeira, composta por postes, fios e cordas em fileiras paralelas, que orientam o crescimento da uva na vertical. As vinhas tam-bém são protegidas com uma manta de aço, que evita danos caso haja chuvas de granizo repentinas. O fe-nômeno costuma acontecer semanas antes do início da colheita devido aochoque térmico atmosférico.
Um detalhe da decoração da Tempus Alba conecta Mendoza com o Brasil. Nas paredes da sala com ostanques de fermentação do vinho há pinturas feitas com borra de vinho, terra e água, uma criação do artista brasileiro Isaac Moraes. As obras também denotam a paixão da família italiana por peças de arte criadas com métodos naturais, que ajudam na imersão do visitante.
Arte e poesia estão presentes em várias vinícolas, como é o caso da Atílio Avena, que produz 300.000 litros anuais, embora tenha capacidade para 3 milhões de litros. A poética da bebida destaca-se em um dos rótulos: “Onde o deserto se transforma em vinho”.
O diretor da empresa, Marcelo Gracieux, investiu em marketing e restaurante para elevar os vinhos a“alta gama”. “O que distingue Mendoza é a montanha”, frisa. Ao lado de Marcelo, o enólogo Santiago Palero planeja um novo varietal e o primeiro espumante da casa para a safra2025/26.
As videiras estão organizadas em espaldeira vertical, consorciadas com oliveiras, que dão sombra às uvas. O espaçamento ideal entre plantas fez a produtividade subir 17%. O cuidado com inventários é outra chave do negócio, diz Marcelo, já que a regulamentação sanitária e comercial é bastante rígida.