Larissa Wachholz chegou a Pequim às vésperas do Natal de 2008, duas semanas depois de se formar em relações internacionais. Ela desembarcou na China para reforçar a equipe de pesquisa que preparava o terreno para o escritório chinês da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex) – e, em seis meses, já havia conhecido perto de 30 cidades. Larissa acabou ficando cinco anos no país e tornou-se referência em discussões sobre as relações comerciais entre o agro do Brasil e o mercado chinês, o principal cliente do agronegócio brasileiro.
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Atualmente sócia da consultoria Vallya Agro e “senior fellow” do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Larissa continua a viajar à China de três a quatro vezes por ano a fim de discutir projetos de colaboração, grande parte deles na área agrícola.
Essa rotina a mantém próxima das transformações que têm ocorrido no perfil dos consumidores chineses, o que é, ao mesmo tempo, um alerta e uma oportunidade para o agro brasileiro. “Não podemos deitar em berço esplêndido, achar que os chineses dependem de nós e vão comprar tudo de qualquer jeito. Precisamos sofisticar a relação (com esse mercado)”, afirmou à Globo Rural.
A seguir, a entrevista com a consultora.
Globo Rural: Como sócia da Vallya Agro, você participa da atração de recursos da China para financiar a agricultura brasileira. Qual a sua análise sobre a atuação chinesa nessa frente?
Larissa Wachholz: Partimos de uma base muito boa. A relação agrícola do Brasil com a China pode ser ainda mais sofisticada, e o principal desafio para isso é a agregação de valor. Hoje, temos na China um consumidor desses produtos. Estamos falando de sofisticar a relação, e um dos ângulos disso é o financiamento. Os chineses já financiam a agricultura brasileira por meio do setor de insumos.
Temos de fomentar investimentos diretos na cadeia, que nos ajudem a superar gargalos e a agregar valor. A Cofco está fazendo uma expansão do terminal privado em Santos, que vai melhorar a infraestrutura de escoamento. Tem o terminal de contêineres em Paranaguá (parte da China Merchants Port Holding Company-CMPort, maior operador de portos públicos da China), líder na exportação de carne congelada. Também tivemos a primeira emissão de “panda bonds” (títulos do mercado chinês) por uma empresa brasileira, a Suzano. Há possibilidade bastante concreta de expansão disso. Inclusive, foi criado em setembro, dentro da Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação, um mecanismo de diálogo regular com a China), um grupo de trabalho para estimular o financiamento agrícola. Alguns bancos chineses têm representação no Brasil, como o Agricultural Bank of China (ABC) que, apesar do nome, não financia apenas a agricultura. Eles nos falam que o setor agrícola seria um dos grandes segmentos para a expansão da atividade dos bancos chineses no Brasil e que os instrumentos de captação disponíveis na China, como os “panda bonds”, que têm taxas muito baixas, pouco se conhecem aqui. Há interesse em torná-los mais conhecidos.
GR: Você vê interesse dos chineses em desenvolver projetos com o Brasil na área de combustíveis marítimos e para aviação, ou, então, que o Brasil se torne um fornecedor desses biocombustíveis?
Wachholz: Sim, há muito interesse em verificar a viabilidade econômica disso. São dois grandes setores da China que vão precisar se descarbonizar, o da navegação marítima e o da aviação. Não há um produto viável para eletrificar os navios, não há baterias que deem conta disso. Então, que papel os biocombustíveis poderiam ter? Das minhas viagens recentes à China, todas tiveram alguma relação com empresas do setor de aviação e de navegação marítima. Estamos ajudando a organizar um evento liderado pela Universidade Tsinghua para o qual virão empresas e investidores para visitas técnicas e promoção do diálogo sobre a viabilidade econômica de o Brasil se tornar um fornecedor desses combustíveis avançados para a China.
GR: Donald Trump cumpre seu segundo mandato na presidência dos Estados Unidos. Sabemos que, no primeiro governo, o Brasil aumentou as exportações de grãos e carne para a China, mas nove anos já se passaram desde o início da primeira administração Trump. Qual é a diferença entre o consumidor chinês daquela época e o de hoje?
Wachholz: A China é um mercado que se move de maneira muito acelerada. Eu diria que a principal diferença entre o cenário de oito, dez anos atrás e o de hoje é o nível de digitalização na vida das pessoas, inclusive nas compras relacionadas ao agronegócio. A pandemia de covid-19 foi um divisor de águas para o comércio eletrônico chinês. Há novas formas de marketing, como live streaming, em que você assiste a uma transmissão e a pessoa está na tela oferecendo produtos. As compras digitais estão muito presentes no dia a dia dos chineses.
“Não podemos nos deitar em berço esplêndido. O Brasil não pode achar que tudo continuará do jeito como está”
GR: Estamos falando mais de negócios entre empresas (B2B) ou entre o consumidor final e o varejo (B2C)?
Wachholz: Todos os tipos, B2B, B2C, compra de produto importado. Isso está se espalhando por todos os segmentos. Visitei, em outubro, uma empresa de e-commerce superforte, responsável por 10% do fornecimento de insumos para suínos na China. Hoje, o consumidor chinês também está disposto a comprar tudo pela internet e com muitas facilidades. E há uma relação direta entre estar nas plataformas digitais e agregar valor. Quando se agrega valor, começa-se a gerar marca. Commodity não tem marca. Se o consumidor ainda não confia naquela marca, tem de começar a confiar no país. Eles vão querer ver o que o Brasil tem a oferecer em uma plataforma de comércio digital, o que estão falando do país na imprensa após a COP, o que podem consumir do Brasil. A China tem tanto um consumidor semelhante ao de Manhattan ou da “City” londrina (centro financeiro de Londres) quanto o de classe média, que não quer um negócio tão caro, mas procura muita qualidade – e que, tendo passado pela covid, presta mais atenção do que já prestava à segurança do alimento. Ter uma marca internacional é muito importante para convencer aquele consumidor de que o seu produto é bom.
GR: Quais segmentos mais oferecem oportunidades para produtos brasileiros de valor agregado?
Wachholz: Faz sentido trabalhar a cadeia de proteína animal, para fazer chegar ao consumidor um produto mais porcionado ou transformado em outro produto. Inclusive com plantas locais na China, em parceria com empresários locais. “Ah, mas aí vai gerar renda na China…” Vai, e tudo bem. Você vai estar mais perto do consumidor e vai conseguir modular seu produto ao gosto daquele consumidor.
Um segmento em que faz muito sentido o Brasil se posicionar, porque o consumidor chinês imagina que o Brasil possa ser bom, é em itens que podem ser promovidos como superalimentos. Açaí, cacau, castanhas, quanto mais processados, melhor. Esses produtos teriam mais chance de sucesso na via digital. No caso do café, é preciso disseminar a cultura. Fruta é desafiador por causa da distância. (Com o embarque) de navio, a chance de o produto estragar é muito grande. E o avião precisa de um comércio de produtos indo e voltando com frequência. Mas um supermercado chinês tem vários produtos para crianças, lanches à base de fruta. Tudo isso pode sair do Brasil.
GR: Já há iniciativas de marcas brasileiras no comércio eletrônico chinês?
Wachholz: Tem café brasileiro vendido via contas comerciais do WeChat, normalmente por meio de parceiros locais de distribuição, porque há uma expectativa (do consumidor) de que seja rápido e fácil, e, para isso, precisa ter esse parceiro na entrega. Há uma classe de pessoas críticas, interessadas em preservar sua saúde e a de seus filhos, e a maioria delas teve apenas um filho. Elas vão dar todas as condições para que aquela criança se desenvolva com plena saúde e educação.
GR: Você vê menos oportunidades de agregar valor em commodities?
Wachholz: A cadeia de commodities tem algumas possibilidades. Tenho visto atração de investimentos diretos da China para produção de ração no Brasil. Uma empresa chamada Haid Group planeja investir em Mato Grosso a partir do caroço do algodão. Ração para animais domésticos é outro mercado que tem crescido muito na China e para o qual faz sentido o Brasil olhar. Já ocupamos um papel muito importante no setor de celulose, que está se desenvolvendo com a procura da classe média por itens com padrão de qualidade maior. Podemos exportar ainda mais. Mas acredito que o principal motor para fazer diferença em larga escala é o biocombustível para navegação e aviação.
GR: O consumidor chinês está preocupado com a sustentabilidade na atividade agrícola? É possível que a China passe a cobrar rastreabilidade com identificação individual de animais e segregação de cargas de grãos, a exemplo do que a Europa diz que fará?
Wachholz: Sim, eles estão preocupados, mas não querem parecer que estão seguindo o que a Europa tende a fazer, que é obrigar fornecedores a se adequar a uma regra. Eu não descartaria que eles passem a ser cada vez mais incisivos na exigência de rastreabilidade, porém mais na linha de privilegiar produtos que tenham componentes de sustentabilidade, de estimular práticas melhores. Eles valorizam a rastreabilidade, principalmente para saber se o produto vem de uma fonte segura. O melhor cenário seria (os chineses) darem pagamento adicional. É possível? Em larga escala, não tenho muita certeza, eles são muito pragmáticos em relação a preço.
GR: Que lição o Brasil pode tirar da forma como a China vem se posicionando na guerra comercial deste segundo mandato de Trump?
Wachholz: A China aprendeu com o primeiro mandato que precisava diversificar (as relações). O Brasil se beneficiou disso. Acho que há uma diretriz de continuar diversificando relações agora. Uma das lições é que, se a quebra de confiança traz problemas, manter uma relação de confiança, caso do Brasil, traz muitas vantagens. Temos de refletir sobre como aprofundar essa relação. Não podemos deitar em berço esplêndido, achar que os chineses dependem de nós e vão comprar tudo de qualquer jeito, que tudo vai continuar como está. Precisamos sofisticar a relação e levá-la a outro nível que nos beneficie cada vez mais.