A noite se adensa sobre a Hidrovia Tietê-Paraná quando a reportagem da Globo Rural embarca no empurrador que vai levar um comboio com 5.000 toneladas de milho em barcaças de São Simão (GO) a Pederneiras (SP).
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Essa é a primeira vez que uma equipe de jornalismo acompanha o trajeto, que exige uma viagem de oito dias, preenchidos por uma paisagem uniforme e tediosa e na qual a trilha sonora é o ronco muito alto do motor.
No convés, a rotina dos tripulantes alterna vigilância e momentos de lazer. No comando está Edimar Fernandes Santos, de 57 anos, veterano com mais de 37 anos de navegação, para quem cada curva e eclusa é um desafio conhecido. “Com o tempo, a gente vai prevendo temporais, ventos fortes, até acidentes. É preciso cuidado redobrado, especialmente em trechos como Nova Avanhandava, onde já tivemos obras de derrocamento, que acabam aumentando para 16 horas uma viagem que leva oito horas”, afirma.
No contraturno do comandante, o piloto Deraldo Rodrigues de Souza, de 50 anos, aprende a manobrar e enfrentar trechos complexos, enquanto o contramestre Vagno Alexandre Rodrigues de Souza, de 45 anos, se encarrega da organização, rádio e atracações, se preparando para se tornar piloto e, futuramente, comandante. Tudo é muito limpo e arrumado.
Na hidrovia – que, com 2.400 quilômetros, é uma das mais extensas do país –, a operação da Louis Dreyfus Company (LDC), que a Globo Rural acompanhou, transporta 1,4 milhão de toneladas de grãos por ano, principalmente soja e milho, de Mato Grosso e Goiás. Cada comboio, com quatro barcaças, substitui cerca de 150 caminhões, o que reduz a pressão sobre as estradas.
Um comboio com quatro barcaças substitui 150 caminhões, o que reduz a pressão sobre as rodovias
Divulgação/LDC
A hidrovia também ajuda nos esforços para a descarbonização do transporte. Estudos do programa Integra Tietê mostram que, a cada 1.000 quilômetros que a carga viaja pelos rios, em vez de rodovias, consegue-se uma redução de 432 quilos nas emissões de CO2.
O transporte hidroviário não é o mais rápido – o comboio navega a 10 quilômetros por hora (não por acaso, tripulação e reportagem não sofreram com enjoos) –, mas compensa a relativa lentidão com grandes volumes e sustentabilidade. Graças à integração com a ferrovia em Pederneiras, a carga pode seguir para o Porto de Santos sem sobrecarregar o acesso rodoviário.
“Não estamos falando de velocidade, mas de volume transportado com menos emissão de carbono. E isso também não quer dizer que a hidrovia é sempre a mais favorável, mas ela nos dá uma opção logística”, argumenta João Paiva, líder global de portos e hidrovias para operação de grãos da LDC.
Dados nacionais atestam que o uso dessa alternativa tem crescido no país. De acordo com o Anuário Agrologístico 2024 da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o volume de soja e milho que viaja por hidrovias foi de 3,4 milhões de toneladas, em 2010, e saltou para 30 milhões, em 2023. O crescimento foi de 782%. Nesse intervalo, a participação do modal no transporte do agro passou de 8% para 19%, com pico de 23%em 2022.
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O Brasil tem 42.000 quilômetros de hidrovias, sendo 21.000 quilômetros navegáveis e 15.000 com potencial de navegação. O uso, no entanto, é limitado. Isso ocorre porque, para serem navegáveis, os rios precisam de constantes intervenções, como obras para aumento de calado. Além disso, em muitos rios, falta conexão com outros modais, o que dificulta o transporte.
A Hidrovia Tietê-Paraná, pela qual passam 2 milhões de toneladas de grãos e areia todos os anos, é estratégica para o agronegócio nacional, em particular para o Estado de São Paulo. Calcula-se que ela tenha potencial para movimentar 7 milhões de toneladas ao ano, e, por isso, a via faz parte do Plano Plurianual do governo estadual. “É uma diretriz do governador olhar a infraestrutura em rede, conectando os modais e pensando em soluções de longo prazo”, afirma a secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo, Natália Resende.
O governo estadual prevê concluir em 2026 uma das principais obras de infraestrutura da hidrovia: o derrocamento (remoção de rochas e outros obstáculos) do canal de Nova Avanhandava, um gargalo antigo na região. Com 70% das intervenções concluídas, o projeto inclui a retirada de rochas submersas em um trecho de 16 quilômetros na jusante da usina hidrelétrica.
Até o momento, o trabalho já movimentou mais de 300.000 metros cúbicos de material, o equivalente a 221 piscinas olímpicas.
Os investimentos somam R$ 293 milhões, em uma iniciativa em parceria entre governo estadual, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Eletrobrás e Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). O Dnit ofertou R$ 107 milhões dese montante, e a Eletrobrás, R$ 211 milhões – sendo R$ 147 milhões previstos no processo de privatização da companhia e R$ 64 milhões adicionados neste ano. A licitação do contrato foi como obra pública estadual.
Mas, até a obra ficar pronta, a tripulação continuará com um problema: é necessário levar as barcaças pelas eclusas uma a uma. O trabalho demora 16 horas, período em que nenhum marinheiro do convés pode descansar. Mas há refresco para os olhos até na hora do trabalho pesado. “O divertido é que vemos sucuris nos amarradores e até jacarés”, conta André.
Além do derrocamento, o governo estadual trabalha na ampliação dos vãos de pontes em rodovias como a SP-333 e a SP-425, nas quais era necessário desacoplar comboios para transpor trechos estreitos. “Em alguns casos, um vão de 30 metros vai passar a ter até 110 metros, permitindo o tráfego contínuo”, diz a secretária de governo.
Em uma noite de viagem da GLOBO RURAL, a destreza do comandante Edimar ficou clara durante a passagem elo vão apertado da ponte rodoferroviária Rollemberg-Vuolo: o breu era total. “Até que melhorou agora”, ele observa. “Antes o farolete era mais fraco.”
Não por causa de problemas de infraestrutura, mas por distração ou imprudência, acidentes acontecem. Edimar já viu uma torre de alta tensão cair em um barco porque o piloto esbarrou nela. Todos os outros viram barcos de pescadores serem “atropelados” por comboios, com resultados que ficaram entre grandes sustos e algumas mortes. “O comboio se arrasta muitos metros quando revertemos a propulsão, e os pescadores insistem em ficar na via marítima”, declara o piloto Deraldo.
Pela primeira vez, uma equipe de reportagem acompanhou o trajeto entre São Simão (GO) e Pederneiras (SP). Na foto, a jornalista Fernanda Pressinott (a quarta, da esq. para a dir.) e a tripulação
Fernanda Pressinot
Mas, entre a observação e a vigilância, há espaço para lazer: música e conversas animam a viagem. Alguns, como a marinheira Priscila, preferem assistir a doramas ou malhar na proa (sim, nas barcaças). Segundo ela, esse é o único jeito de perder os quilos que ganha em cada turno. E o corpo bonito, garante, nunca atraiu assédio, nem foi tema de problemas ou, ao contrário, de vantagens. “Sou tratada igual a todos”, diz.
O cotidiano na embarcação é preciso. Arilson Fogaça dos Santos, de 28 anos, e Tarcísio de Carvalho, de 53, cuidam do convés, amarrando e desamarrando as barcaças. São eles que enfrentam a molhadeira se for preciso amarrar as barcaças em alguma travessia com chuva.
Alex Júnior, de 24 anos, o mais novo da tripulação, vai absorvendo cada detalhe para ter uma carreira de sucesso na navegação fluvial. André Luiz Santos Almeida, de 36, garante o funcionamento perfeito do motor com a ajuda de Priscila, de 43 anos, que diz gostar do barulho.
Segundo os colegas, de todos os integrantes da tripulação, o mais importante é o cozinheiro Celso Ricardo Garcia.Com uma aptidão incrível para preparar refeições em uma cozinha um pouco apertada e barulhenta, Celso, de 51 anos, é o “culpado” pelos quilos a mais de quem entra na escalade 22 dias a bordo. “O que faz o barco não sair ou causa revolta nos marinheiros é ar-condicionado quebrado ou problemas com o cozinheiro”, brinca DanielAzevedo de Oliveira Santos, gerente de operações da LDC.
Mas Celso é modesto. “Faço o que o povo gosta, por isso o sucesso”, diz. Na verdade, o cozinheiro faz bem mais. Na estadia da reportagem, além do trivial, como arroz, feijão, carnes variadas e macarrão, teve lasanha, pizza, diferentes pães e bolos e banoffee de sobremesa.
Com o regime de 22 dias sobre as águas, toda a tripulação diz sentir saudade da família. A categoria busca a escala um por um, como a da marinha naval, com o mesmo número de dias embarcados e de folgas.
Para Edimar, Deraldo, Vagno, Arilson, Tarcísio, Alex, André, Priscila, Celso, e tantos outros com os quais a Globo Rural viajou, a hidrovia é mais do que um modal eficiente e sustentável: é rotina, desafio, aprendizado e convívio diário. Foi um prazer acompanhar.
*A jornalista viajou a convite da Louis Dreyfus Company