
Restrições comerciais e incertezas de mercado, como as introduzidas pelas tarifas do presidente americano, Donald Trump, estão entre os fatores estruturais por trás da recente piora nos indicadores de fome e má nutrição. Esta é a análise do economista-chefe da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e representante regional interino para a América Latina e o Caribe, Máximo Torero.
Na avaliação de Torero, mercados internacionais abertos, transparentes e previsíveis são fundamentais para garantir que o comércio contribua positivamente para a segurança alimentar e a nutrição globais. “Tarifas unilaterais e ações comerciais arbitrárias vão contra esse princípio, introduzindo ineficiências de mercado e corroendo a confiança no sistema comercial global”, disse ao Valor.
As guerras comerciais, de acordo com o especialista, não apenas remodelaram os fluxos agrícolas globais, como também criaram efeitos em cascata que afetam negativamente a disponibilidade e a acessibilidade dos alimentos, sobretudo em regiões vulneráveis.
Restrições minam a eficiência dos mercados globais e aumentam os custos de transação e logística, que acabam sendo repassados aos consumidores”
Principal conquista da presidência brasileira do G20 no ano passado, a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza tem ajudado a mobilizar investimentos coordenados e apoiar o desenvolvimento de políticas nacionais eficazes para combater a insegurança alimentar, disse o economista-chefe da FAO.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: As tarifas impostas aos países pelo presidente dos EUA, Donald Trump, podem afetar a agenda mundial de combate à fome?
Máximo Torero: Embora seja difícil atribuir diretamente decisões tarifárias específicas ao aumento dos preços globais dos alimentos – dada a atual incerteza e os diferentes efeitos de curto, médio e longo prazo, dependendo das respostas dos países -, o uso mais amplo de políticas comerciais protecionistas enfraquece a cooperação internacional e a previsibilidade essenciais para o bom funcionamento do sistema agroalimentar. Restrições comerciais e incertezas de mercado, como as introduzidas pelas tarifas, estão entre os fatores estruturais por trás da recente reversão nos avanços na redução da fome e da má nutrição.
Valor: Quando a fome voltou a crescer no mundo?
Torero: Após décadas de queda, a fome global voltou a crescer a partir de 2015, impulsionada em parte por desacelerações econômicas e interrupções no comércio global. Nesse contexto, as guerras comerciais não apenas remodelaram os fluxos agrícolas globais, como também criaram efeitos em cascata que afetam negativamente a disponibilidade e a acessibilidade dos alimentos, especialmente em regiões vulneráveis.
Valor: O que a FAO defende?
Torero: A FAO defende consistentemente um sistema multilateral de comércio baseado em regras, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mercados internacionais abertos, transparentes e previsíveis são fundamentais para garantir que o comércio contribua positivamente para a segurança alimentar e a nutrição globais. Tarifas unilaterais e ações comerciais arbitrárias vão contra esse princípio, introduzindo ineficiências de mercado e corroendo a confiança no sistema comercial global.
Valor: Qual é o impacto do aumento de tarifas em países de baixa renda, especialmente afetados pela alta dos preços?
Torero: O aumento das tarifas tem consequências amplas para os sistemas agroalimentares globais – consequências particularmente agudas para países de baixa renda. Esses países frequentemente dependem fortemente da importação de alimentos para atender à demanda interna, e aumentos repentinos de tarifas podem interromper fluxos comerciais, elevar os preços globais e desencadear volatilidade. Tais restrições minam a eficiência dos mercados globais e aumentam os custos de transação e logística, que acabam sendo repassados aos consumidores – muitos dos quais já são vulneráveis à insegurança alimentar. Para países de baixa renda e deficitários em alimentos, o aumento dos preços causado por distorções comerciais representa uma ameaça direta à acessibilidade e ao acesso aos alimentos. Relatório da FAO observou que mais de 2,6 bilhões de pessoas no mundo não podem pagar por uma dieta saudável, sendo os choques econômicos e a volatilidade de preços fatores-chave dessa tendência. Com a alta dos preços dos alimentos, famílias de baixa renda – que destinam grande parte de sua renda à alimentação – são forçadas a reduzir a quantidade ou a qualidade de suas dietas.
Valor: Como evitar isso?
Torero: Defendemos a manutenção do comércio de alimentos aberto e previsível, especialmente em tempos de incerteza global. Garantir a transparência nos mercados alimentares por meio de mecanismos como o Sistema de Informação de Mercado Agrícola [lançado pelo G20] é essencial para evitar respostas impulsionadas por pânico. Os países também devem adotar políticas públicas integradas que combinem respostas de curto prazo com estratégias de longo prazo para a resiliência. Isso inclui melhorar a produção alimentar doméstica, fortalecer os sistemas de alerta precoce, investir em agricultura adaptada ao clima e garantir ações coordenadas entre os setores da saúde, educação e proteção social.
Valor: Que tipo de mobilização o G20 deve empreender nessa agenda?
Torero: O G20 pode desempenhar um papel fundamental ao abordar os fatores que impulsionam a insegurança alimentar global, particularmente promovendo maiores investimentos em sistemas agroalimentares sustentáveis para aumentar a resiliência, a produtividade e a equidade. O G20 pode liderar esforços para ampliar o financiamento público e privado, especialmente por meio de mecanismos como financiamento misto, empréstimos concessionais e garantias.
Valor: O que explica a queda no número de pessoas em situação de fome em 2024 em comparação com anos anteriores?
Torero: A redução da fome global em 2024 – de 8,5% em 2023 para 8,2% – foi impulsionada principalmente por avanços significativos no sul e sudeste da Ásia e na América do Sul. Nessas regiões, o melhor acesso à alimentação foi apoiado por fortes programas de proteção social, como transferências de renda e alimentação escolar, além do aumento da produção agrícola e das exportações de alimentos essenciais. No entanto, esse progresso oculta disparidades regionais. Embora a fome tenha diminuído globalmente, ela continuou a crescer na maioria das sub-regiões da África e da Ásia Ocidental devido a conflitos, choques climáticos e instabilidade macroeconômica. A situação na África é preocupante e pode ser atribuída a vários fatores-chave.
Valor: Pode explicar quais fatores são esses?
Torero: Primeiro, a pressão demográfica permanece alta, enquanto os ganhos de produtividade agrícola são limitados. A produção de alimentos simplesmente não acompanha o crescimento populacional em muitas áreas. Segundo, essas regiões são atingidas por múltiplos fatores de choque: conflitos, extremos climáticos e recessões econômicas. Esses choques interagem e se reforçam, enfraquecendo sistemas agroalimentares já frágeis. Além disso, o clima representa uma séria ameaça, especialmente para as populações mais vulneráveis. Terceiro, muitos países africanos e do oeste asiático são importadores líquidos de alimentos e altamente expostos à volatilidade de preços globais. A desvalorização das moedas, impulsionada por altas taxas de juros globais e instabilidade doméstica, reduziu ainda mais seu poder de compra. Como resultado, a inflação dos alimentos tem sido mais severa nessas regiões, agravando a crise de acesso à alimentação.
Valor: Apesar da redução nas taxas de fome em 2024, os números ainda são mais altos do que no período pré-pandemia. Por que a recuperação da segurança alimentar tem sido tão lenta?
Torero: A lenta recuperação da segurança alimentar se deve, em grande parte, à inflação persistente dos preços dos alimentos, que superou consistentemente a inflação geral entre 2021 e 2023. Essa tendência, impulsionada por choques globais como a pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia e eventos climáticos extremos, deixou impactos duradouros nos sistemas alimentares, especialmente nos países de baixa renda. Nossas estimativas mostram que um aumento de 10% nos preços dos alimentos leva a um crescimento de 3,5% na insegurança alimentar e de 2,7% a 4,3% na emaciação infantil. Esses não são apenas efeitos econômicos – são tragédias humanas com implicações de longo prazo. Fraquezas estruturais nos sistemas agroalimentares, acesso limitado à financiamento acessível e conflitos contínuos também retardaram o progresso. Mesmo com a queda dos preços de commodities, essas reduções não foram plenamente repassadas aos preços para os consumidores, devido a fatores como ineficiências na cadeia de suprimentos, altos custos de energia e desvalorização cambial. Como resultado, muitas famílias ainda enfrentam dificuldades para pagar por uma dieta saudável.
Valor: Entre os países analisados, qual fator estrutural se destaca como a principal causa da fome em 2024?
Torero: O principal fator estrutural da fome em 2024 é a combinação de baixa produtividade agrícola e alta exposição a choques externos – especialmente na África Subsaariana. O rápido crescimento populacional, o acesso limitado à tecnologia e a infraestrutura precária continuam a restringir a produção de alimentos. A forte dependência de importações expõe ainda mais essas regiões à volatilidade dos preços globais e a riscos cambiais, aprofundando a insegurança alimentar.
Valor: Qual tem sido o impacto da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza nessa redução?
Torero: Ela tem ajudado a promover boas práticas, mobilizar investimentos coordenados e apoiar o desenvolvimento de políticas nacionais eficazes para combater a insegurança alimentar. Ao incentivar estratégias que fortalecem tanto a preparação – como sistemas de alerta precoce e ferramentas de seguro – quanto a capacidade de resposta – como proteção social e agricultura resiliente ao clima -, a aliança tem desempenhado um papel catalisador na construção de resiliência. Sua ênfase em ações inclusivas e lideradas pelos países contribuiu para os avanços observados em várias regiões em 2024, especialmente onde os governos se articularam com instituições internacionais.
Valor: Como a América Latina tem se saído na luta contra a fome e a má nutrição?
Torero: Dois fatores principais sustentam esse sucesso. Primeiro, houve um forte foco no apoio às populações mais vulneráveis. Países como Brasil e México implementaram programas sociais impactantes, incluindo transferências de renda, transferências condicionadas e iniciativas de alimentação escolar. Esses programas provaram ser altamente eficazes na prevenção da queda de indivíduos vulneráveis em situação de pobreza ainda mais profunda, por meio da melhoria na distribuição de renda. Segundo, houve investimentos substanciais no aumento da produção e da eficiência agrícola. Brasil, Uruguai e Paraguai estão entre os principais exportadores globais de cereais, aumentando significativamente a disponibilidade de alimentos tanto local quanto internacionalmente. Além disso, países como Chile, Peru, Equador e Colômbia se destacaram na produção de commodities de alto valor, tornando-se importantes exportadores de diversos alimentos apreciados em todo o mundo. Essa combinação de medidas robustas de proteção social e maior produtividade agrícola desempenhou um papel crucial no sucesso da região.