No campo, os esforços ajudam a produzir energia, evitar a erosão e contribuir com a adubação nos pastos É da área preservada da Fazenda BioCanto, em Cascavel (PR), que o pecuarista Fábio Padovani e o filho Matheus obtêm a principal matéria-prima para o manejo da propriedade: um caldo rico em microrganismos que eles aplicam na lavoura e no cocho dos animais para assegurar que plantas e gado sejam mais resistentes a pragas e doenças.
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O preparo do insumo na propriedade ocorre em tanques de 2.000 litros. Nesse trabalho, Fábio e Matheus adicionam a serrapilheira, camada superficial do solo, e a mantêm em uma solução de nutrientes que permite a multiplicação de todos os microrganismos existentes no solo florestal. Com o sistema, a ideia é replicar essa biodiversidade na lavoura.
“Tem patógeno aqui? Claro que tem. Qualquer ambiente vai ter patógeno. Mas ele está suprimido por uma biologia boa”, relata Fábio. Ele é um dos cerca de 600 produtores rurais brasileiros que são adeptos de uma técnica que o engenheiro agrônomo e fitopatologista Celso Tomita desenvolveu há 40 anos, durante seus estudos na Universidade de Brasília (UnB).
Inicialmente dedicado à pesquisa sobre o uso de microrganismos isolados, como normalmente se pratica na aplicação de insumos biológicos, Tomita conta que se sentia incomodado com os resultados dos seus estudos. “Eu já tinha isolado mais de 5.000 bactérias diferentes e estava cansado, porque elas não funcionavam de modo estável. Foi quando surgiu a ideia de cultivá-las em comunidade”, recorda o pesquisador. A partir da mistura controlada de microrganismos isolados, ele chegou ao modelo atual. Batizado de TMT, esse sistema busca replicar a biodiversidade de solos florestais em áreas agrícolas.
É impossível detalhar quais organismos estão presentes na solução. Só de bactérias, são mais de 1.500. “A complexidade é gigantesca, a mesma de um ambiente de solo florestal”, explica Tomita. Segundo ele, esse é o segredo da técnica e também a razão para que a maioria das pesquisas do setor tenha como objeto apenas um ou outro microrganismo de forma isolada.
“A tendência da ciência, hoje, é isolar e especializar. Nós estamos integrando o lado ecológico do sistema, que envolve solo, planta, raiz e microbiologia”, detalha o fitopatologista. Ele compara a dinâmica de interações no solo da floresta com uma empresa, na qual atuam copeiros, funcionários, especialistas — e também diretoria e presidência. “Uma empresa funciona só com os diretores? Não vai funcionar”, diz.
Na BioCanto, onde Padovani está há seis anos investindo em práticas regenerativas na agricultura e na pecuária, o resultado positivo tem aparecido tanto na parte financeira, com economia de fertilizantes e defensivos, quanto com o bem-estar animal. No confinamento de onde saem, todos os anos, mais de 1.800 animais da raça angus para abate, chama a atenção a baixa incidência de moscas e a ausência de cheiro forte.
O preparo da solução é periódico, e a aplicação ocorre no ambiente dos animais três vezes por semana, a cada lavagem do local. Com isso, o esterco bovino — que passa por compostagem em um biodigestor para se tornar biogás (que, por sua vez, vai se converter em energia elétrica) e biofertilizante — também é inoculado com microrganismos. “Essa biologia elimina a amônia, uma das causas de problema respiratório em confinamento, e a transforma em nitrato, que vira nutrientes e controla a mosca”, detalha o produtor.
Com a reutilização do esterco tratado, Padovani gera de 600 kW a 700 kW de energia diariamente, além de um volume de fertilizante suficiente para a produção total da silagem que os animais consomem. A parte sólida gera um composto orgânico que também se aplica na fazenda. “É por isso que dizemos que esse é um projeto de economia circular. Ele se retroalimenta”, diz.
O produtor Fábio Padovani mostra a composição do solo florestal na fazenda BioCanto, em Cascavel
Thiago de Jesus
Padovani tem adotado práticas regenerativas na fazenda há seis anos. A ideia inicial era preservar os mananciais que abastecem uma indústria de água mineral que existe na propriedade, mas a pecuária assumiu um papel central nesse processo, segundo ele. “Se não fosse a pecuária, eu teria que trazer subprodutos de fora. Hoje, ela me entrega carne de qualidade, energia, composto orgânico sólido e fertilizante líquido. É a pecuária que me dá todo esse potencial, ela é o coração do sistema”, avalia o pecuarista.
Segundo o pesquisador César Francisco Araújo Júnior, da área de solos do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR), a adoção de práticas regenerativas tem crescido no estado. Ele estima que cerca de um terço dos produtores paranaenses hoje adote manejos que aumentam a qualidade do solo e geram ganhos de produtividade e sustentabilidade.
O pesquisador também considera a pecuária uma importante ferramenta para conter a erosão do solo na região. “Nós percebemos que, quando é bem manejado, com uma taxa de lotação adequada, respeitando a forrageira, o animal melhora o aspecto do solo, potencializando a regeneração da sua estrutura”, afirma o pesquisador, que atua no Paraná há 15 anos. Entre os ganhos, ele menciona a ciclagem de nutrientes pelas fezes e urina e a manutenção de uma cobertura vegetal constante. “Em resumo, a pecuária regenerativa é um conjunto de técnicas que vai proporcionar melhorias do meio ambiente de forma geral”, ressalta.
Em Guarapuava, a virada chegou à Fazenda Capão Redondo há oito anos, quando o pecuarista Rodolpho Werneck Botelho percebeu que o sistema não respondia mais à adubação. “A adubação química respondia até um certo nível, mas depois disso não adiantava mais aumentar, pois não havia aumento de produtividade”, lembra o produtor.
Há oito anos, quando percebeu que vinha tendo poucos resultados com a adubação química na propriedade em Guarapuava (PR), Rodolpho decidiu mudar o manejo
Thiago de Jesus
Embora não seja adepto do TMT, Botelho decidiu adotar outras práticas em suas áreas de lavoura e pecuária, de 2.200 hectares, como a utilização de insumos biológicos isolados, a rotação de culturas e o plantio em conjunto do milho com pastagem. À primeira vista, a lavoura com gramíneas nas entrelinhas gera estranhamento. “A grande dúvida do produtor rural é se isso gera prejuízo na produção do milho devido à competição (por nutrientes). Mas, em sete anos, nunca tivemos problema significativo de perda de produtividade dentro desse processo”, garante.
O pesquisador do IDR-Paraná explica que, quando a execução é correta, no consórcio entre milho e gramínea não há competição, mas sim troca entre as duas espécies a partir dos exsudatos (fluidos e secreções que podem ajudar na própria sobrevivência da planta) de suas raízes. “São compostos gerados pelo metabolismo fisiológico das plantas e que, quando liberados no solo, criam uma região chamada de rizosfera, na qual os microrganismos se concentram”, explica Araújo Júnior.
Associada ao uso de pó de rocha, composto orgânico que ajuda a remineralizar o solo, o consórcio entre capim-aruana e milho que Botelho adota tem garantido ao produtor um rendimento de cerca de 250 sacas de milho por hectare, em média, ou o equivalente a 15 toneladas de grão, que também acabam sendo destinadas à alimentação do rebanho. “Ou seja, ele tem agregado vida, matéria orgânica e reciclagem de nutrientes, além de ajudado a garantir aumento de produtividade na safra seguinte”, completa o produtor.