Pela primeira vez na história das conferências do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), indígenas, quilombolas, agricultores familiares e comunidades tradicionais fornecerão parte dos alimentos que serão consumidos durante o evento.
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Além do edital da 30ª edição da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-30), que estabelece de forma inédita que ao menos 30% dos ingredientes sejam provenientes da agricultura familiar, da agroecologia e da produção de povos e comunidades tradicionais, estes grupos ganharam um novo reforço no início de outubro, com a definição do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá como coordenador dos restaurantes oficiais do evento, que acontecerá em Belém, no mês de novembro.
No Estado do Pará, cerca de 8 mil famílias da agricultura familiar estão aptas a fornecer alimentos para a COP-30. A compra de insumos para a COP-30 poderá injetar R$ 3,3 milhões na economia local. Comandado pela cozinheira Tainá Marajoara, do povo Aruã-Marajoara, o Iacitatá foi criado em 2009, a partir do Projeto CATA – Cultura Alimentar Tradicional Amazônica, que mapeou saberes e sabores do Pará. Desde então, organiza uma rede que envolve cerca de 600 famílias da agricultura familiar, da reforma agrária e de comunidades tradicionais, garantindo escoamento da produção, preços justos e valorização da cultura alimentar.
Entre os produtores que fazem parte desta rede destaca-se Noel Gonzaga, de Marituba, município da região metropolitana de Belém. Ele integra uma cooperativa em Marituba e é um dos fundadores do Gruca – Grupo para Consumo Agroecológico, que reúne consumidores e pequenos produtores locais. “Vamos fornecer alimentos para a COP30 tanto pela cooperativa quanto pela rede articulada com o Iacitatá. Essa conquista é coletiva”, diz.
A produção de Gonzaga inclui macaxeira, abóbora, feijão, quiabo, milho, açaí e a batata ariá, que de acordo com o produtor, corre risco de extinção pela falta de consumo. “Era um alimento muito consumido, mas, por conta da introdução do trigo, perdeu espaço. Alguns agricultores, como eu, estão tentando trazer de volta essa batata amazônica às mesas dos consumidores”, conta.
Gonzaga cultiva o que consome e comercializa o excedente de sua produção na cooperativa, pelo Gruca e também para o Iacitatá. “Nossa agricultura é familiar de base agroecológica. Eu não vou só vender, eu vou comer, o meu filho vai comer. Isso já vai me guiar para práticas sustentáveis”, defende o produtor.
Noel Gonzaga, produtor agroecológico em Marituba (PA)
Arquivo pessoal
Afinidade agroecológica
O trabalho do Iacitatá e das redes parceiras envolve parcerias com diversas cooperativas, que enviarão arroz, açúcar e café produzidos de forma agroecológica em regiões como Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais. “A nossa afinidade não é geográfica, é de ideias. Preferimos trazer arroz agroecológico do Sul do que comprar o arroz daqui que vem de áreas griladas e desmatadas”, afirma Noel, destacando que a rede se sustenta em princípios de solidariedade e ética.
Produtores do Gruca cultivam açaí, macaxeira, batata-ariá, cupuaçu, muruci e carne de jaca. Estes alimentos representam a biodiversidade amazônica e estarão presentes no cardápio da conferência. A safra do açaí, por exemplo, coincidirá com a realização da COP30, o que deve garantir fartura do fruto símbolo do Pará. “Estamos no auge da colheita. Vai ser bonito ver esse alimento que é tão nosso indo parar na mesa de gente do mundo inteiro”, diz Noel.
A entrega dos produtos da agricultura familiar será feita com apoio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável por articular a compra dos insumos e o abastecimento dos restaurantes da COP30. A ação faz parte do projeto “Na Mesa da COP”, coordenado pelo Instituto Regenera, de São Paulo, que já participou de outras conferências climáticas internacionais.
“Essa vitória ocorre em um momento de intenso debate sobre como os sistemas alimentares se relacionam com as mudanças climáticas. No caso do Brasil, 70% das emissões estão ligadas à produção e ao consumo de alimentos”, diz Noel.
Nos últimos anos, Tainá Marajoara se tornou uma referência internacional na defesa da cultura alimentar amazônica. Pesquisadora e ativista, a cozinheira defende que comer é também um ato político e de resistência. Sua visão sobre a alimentação conecta ancestralidade e sustentabilidade, “Durante a COP30, as mesas servirão muito mais do que pratos regionais: servirão histórias de vida, territórios e saberes ancestrais”, diz Tainá.