
Em meio ao cafezal, no município de Tomazina, a 306 quilômetros de Curitiba, Edésio Luiz de Souza lembra-se claramente das tristes cenas que viu nas primeiras horas do dia 18 de julho de 1975, quando os 2.500 pés de café que ele cultivava amanheceram completamente queimados pela geada que atingiu todo o Paraná e o Estado de São Paulo naquela madrugada.
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“Parece que foi ontem. Quem viveu aquilo jamais se esqueceu. Tudo estava morto, congelado. Eu nunca tinha visto coisa igual e nunca mais vi uma geada tão brava”, conta o cafeicultor, atualmente com 80 anos de idade.
Geada negra no Paraná
Em Londrina, a maior cidade do interior do Paraná, a 192 quilômetros de Tomazina, o engenheiro agrônomo e pesquisador Tumoru Sera se emociona ao se recordar da paisagem fúnebre que se avistava em todo o horizonte naquele amanhecer de 50 anos atrás.
Na época com 24 anos de idade, ele já era pesquisador do então Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) e havia se dedicado, no dia anterior, quando um vento frio e insistente chegou à região no fim da tarde, a tentar salvar as plantas do experimento que mantinha, protegendo-as, fazendo sobre elas uma espécie de “casa” com plantas de milho ou cobrindo com terra os troncos dos cafeeiros mais novos.
Sera conseguiu preservar parte do café que desenvolvia para ser resistente ao fungo que causa a doença conhecida como ferrugem, mas na propriedade dos pais dele, Jitsuo Sera e Shige Kuwano Sera, tudo se perdeu.
Geada negra de 1975
Globo Rural
Massa de ar polar
A geada negra de 1975 foi causada por uma massa de ar polar que derrubou as temperaturas, fez nevar em Curitiba em 17 de julho e avançou com intensidade “mapa do Brasil acima”, causando os maiores danos na madrugada do dia seguinte, 18 de julho.
O Norte do Paraná se desenvolveu a partir dos anos 1930 graças à riqueza dos cafezais, que tornaram o Estado o principal produtor do país, a ponto de chegar, em 1962, a responder por 64% de toda a produção nacional, segundo Hugo Godinho, engenheiro agrônomo do Departamento de Economia Rural (Deral), da Secretaria Estadual da Agricultura e do Abastecimento.
Apesar das perdas para o frio, os cafeicultores insistiam na atividade porque nos anos bons a produção era grande, tanto que o governo federal passou a incentivar a erradicação de cafeeiros e a diversificação de culturas.
Em 1975, de acordo com o pesquisador Irineu Pozzobon, em seu livro “A epopeia do café no Paraná”, havia 942 mil hectares cobertos por cafezais no Estado, com 900 milhões de pés de café, respondendo por 34% da produção nacional. E praticamente nenhum deles resistiria à geada de 18 de julho, considerada a pior da história. Tanto que a safra do ano seguinte, 1976, seria considerada como zerada em produção.
No Estado de São Paulo, a Secretaria de Agricultura informou aos jornalistas nos dias seguintes ao fenômeno que 200 milhões de cafeeiros foram prejudicados.
Trabalhador rural utiliza machado para cortar cafeeiro queimado pela geada de 18 de julho de 1975
Arminio Kaiser – Acervo do Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss
Por que geada negra?
Agrometeorologista e pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PR), Heverly Morais explica que a geada negra recebe esse nome pelo fato de deixar as plantas queimadas, pretas, como se tivessem sido atingidas pelo fogo.
Segundo ela, isso acontece por causa do vento, que faz com que, no caso do café, o frio extremo atinja o tronco da planta. “Não tem o que segura o vento, ele vence as folhas, os galhos, passa pelas frestas. E naquela ocasião ventou”, explica.
Heverly Morais, agrometeorologista do IDR-PR: “Não temos registros de outras geadas mais severas do que a de 1975”
Wilham Santin
Na madrugada de 18 de julho de 1975, a temperatura em Londrina, no abrigo, chegou a – 3,5º C. Consultando seu banco de dados, Heverly não encontra temperatura inferior a essa no município nos 50 anos seguintes. “Nunca mais fez tanto frio”.
Todo esse frio, empurrado pelo vento, propiciou que as seivas das plantas se congelassem, deixando-as mortas, queimadas. “O frio rompe e congela os tecidos vegetais e queima a planta, que fica com esse aspecto enegrecido”, detalha a pesquisadora. “Naquele dia, também houve a geada branca, que é a deposição de gelo sobre as plantas, por causa do orvalho”, complementa.
Queimados pela geada, os pés de café ficaram pretos
Acervo do Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss
Persistência e pesquisa
Apesar de perder todos os seus cafés para a geada, Edésio Luiz de Souza não pensou em desistir da atividade. Felizmente, poucos dias antes ele tinha feito boa colheita em uma pequena área que cultivava como meeiro. O lucro foi suficiente para seguir e mais tarde investir em terras e continuar na zona rural.
Hoje, orgulha-se de ter os nove filhos na atividade, todos perto dele e de sua esposa, Celina Maria Diniz de Souza, companheira de vida e de superações. “Se não é o café, eu não tinha criado meus filhos”, diz Edésio.
Nira Souza é uma das filhas do casal. Atualmente, ela tem 14 mil pés de café produzindo e planeja ampliar a sua área de plantação. O grupo “Mulheres do Café”, que Nira lidera no distrito do Matão, tem se destacado por produzir frutos de qualidade, conquistando o mercado de exportação e de cafeterias.
Celina Maria de Souza, Nira Souza e Edésio Luiz de Souza: a família persistiu na cafeicultura apesar de perder quase tudo para a geada de 1975
Arquivo particular de Nira Souza
Um bom exemplo da transformação da cafeicultura paranaense, que deixou de focar em superproduções para almejar a qualidade. “Hoje eu sou muito feliz e me sinto realizada sendo mulher do café”, destaca Nira.
Tumoru Sera passou os últimos 50 anos pesquisando com afinco. Participou do desenvolvimento de 13 cultivares inéditas em nível nacional e internacional e da implantação do café adensado, com as plantas mais próximas umas das outras. “Nossa grande preocupação sempre foi proporcionar viabilidade para as propriedades rurais”, resume.
Ele próprio cafeicultor, olha com otimismo para o futuro da atividade, vislumbrando que as propriedades nutracêuticas do café devem ganhar valor e destaque nas próximas décadas. Quanto às geadas, ele diz que já não são a grande preocupação.
De fato, a região está mais quente. A média das temperaturas máximas registradas em Londrina de 1976 a 2024 é de 27,5º C. Se considerarmos apenas o ano passado, a máxima média foi de 29,9º C, segundo os dados do IDR Paraná apresentados pela agrometeorologista Heverly Morais.
“Hoje, devemos nos preocupar mais com a ferrugem, com os nematoides e com o mercado”, considera Tumoru Sera.
Fenômeno acelerou mudança na agricultura
Nascido em outubro de 1950 no Norte do Paraná, o agricultor Jorge Pedro Frare começou a trabalhar na cafeicultura ainda criança, aos sete anos de idade, limpando tronco de café e fazendo outros serviços mais leves.
No começo dos anos 1970, casado, ele ainda tinha cafeeiros, mas diversificava com outras culturas. Em 1973, já possuía um trator para acelerar os trabalhos, sobretudo em culturas como arroz, milho e soja.
No dia 18 de julho de 1975, Frare já não tinha cafeeiros e estava estabelecido no município de Doutor Camargo, região de Maringá. Ele se assustou com o solo congelado ao amanhecer e se entristeceu com as perdas dos vizinhos que cultivavam café.
Naquele momento, Frare entendeu que a transformação da agricultura do Norte do Paraná iria se acelerar e começou a receber pedidos para empenhar o seu trator no serviço de arrancar as plantas queimadas.
Jorge Pedro Frare, agricultor em Doutor Camargo, Paraná: “Aquela geada acelerou a mecanização da agricultura em nossa região”
Wilhan Santin
“Meu pai, Luiz Alberto Frare, amarrava o cabo de aço no cafeeiro e eu puxava com o trator. Foram dias e dias fazendo isso, com máquina sem capota, sob o sol. Ali, começou a mecanização no Norte do Paraná”, recorda.
Os números mostram que ele tem razão. O Paraná era o principal produtor de café do Brasil. Hoje ocupa apenas a sexta posição entre os dez Estados que produzem o fruto no País. Em compensação, o Estado se tornou o segundo maior produtor de grãos do Brasil, ficando atrás apenas de Mato Grosso.
O 10º levantamento da safra 2024/2025, publicado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) na última semana estima que o Paraná vai totalizar 45 milhões de toneladas de grãos. Somente a soja responde por mais da metade desse montante, com 21,4 milhões de toneladas. O milho responde por 19,5 milhões de toneladas e, o trigo, por 2,4 milhões de toneladas. Outras culturas, como feijão, arroz e cevada completam o total estimado.