
Sónia Martins investe em integração dos vinhedos com leguminosas, oliveiras e pinheiros para fazer “renascer” 12 castas de uvas Ao ritmo do fado, a cantora Amália Rodrigues humanizou o vinho. Chamou a bebida de “senhor” e, na cadência da poesia lusitana, escreveu versos que homenageiam a produção vitivinícola de Portugal. “Oiça lá, ó senhor vinho. Vai responder-me, mas com franqueza. Porque é que tira toda a firmeza. A quem encontra no seu caminho?”, disse Amália na canção de 1971, em que ela ‘conversa’ com o vinho.
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Em um dos trechos, o vinho responde que só faz mal a quem o julga e o trata como água. E é assim que brindam os portugueses, como é o caso da enóloga Sónia Martins, da vinícola Lusovini, hoje responsável por 75 hectares de vinhas em regiões tradicionais de Portugal, como o Vale do Rio Douro e o Dão.
A enóloga Sónia Martins conduziu uma degustação de 12 rótulos no início de maio, em São Paulo
Divulgação/Lusovini
Nessa última, inclusive, a especialista tem se dedicado a recuperar cepas nativas e que estão em risco de extinção por problemas climáticos e de idade dos vinhedos. Com pesquisa e inovação, Sónia encabeça um projeto que está em andamento com o Centro de Estudos Vitivinícolas do Ministério da Agricultura de Portugal – que funciona como a Embrapa – para recuperar 12 variedades típicas da região do Dão, das quais oito são brancas e quatro são tintas.
Para isso, além de pesquisar e testar mudas, a enóloga está investindo no replantio de todas as vinhas da fazenda Vinha da Fidalga, que fica próxima a Nelas, no centro-norte do mapa de Portugal. São oito hectares replantados com essas variedades e que estão em observação pela equipe de Sónia pelos próximos cinco anos.
“O projeto pretende recuperar 12 uvas de vinhedos da década de 1940, 1950, 1970. A ideia da recuperação é manter o perfil e a identidade dos vinhos da região do Dão. Já notamos, entretanto, que as uvas estão produzindo vinhos distintos devido às mudanças climáticas globais”, conta a enóloga.
Mesmo com os desafios, o plano é entender quais plantas respondem de forma mais adequada aos solos da região vitivinícola para, então, investir na que melhor “reaja” e se adapte ao local, explicou Sónia durante uma conversa com apreciadores de vinhos realizada este mês, em São Paulo.
Ela costuma visitar a cidade para ministrar cursos e estreitar laços com a importadora TDP Wines, que hoje representa os negócios da marca de vinhos controlada por Sónia, chamada Pedra Cancela.
Ao lado de Thiago Dal Pizzol, dono da importadora TDP, enóloga Sónia Martins explica sobre vinhos da região do Dão, em Portugal
Globo Rural/Isadora Camargo
Lotes para teste
É com essa marca, proveniente da fazenda Fidalga, que a empresária irá testar os vinhos nascidos das uvas recuperadas. Durante os próximos cinco anos, a decisão da enóloga foi colher as uvas para engarrafar vinhos jovens e sem passagem por barrica de carvalho.
O objetivo é entender o comportamento da uva, como a fruta maturou e fermentou, além de quais são as características da bebida pronta. Alguns dos microlotes estão sendo comercializados, enquanto outros estão servindo para degustações estratégicas para aprimorar e divulgar o projeto.
Rótulos fabricados com as castas de uvas recuperadas
Isadora Camargo
O trabalho de recuperação com o plantio de novos vinhedos começou em 2022 na fazenda Fidalga e continuará por lá pelo próximo quinquênio. É por isso que os testes de bebida ficarão concentrados na marca Pedra Cancela, apesar de a empresa de Sónia ter outras áreas espalhadas por Portugal e outros rótulos comerciais.
Na área cultivada da propriedade que fica em Nelas, no Dão, ela revela que organizou um cultivo de “proteção integrada”, que ainda não é orgânica ou biodinâmica, mas faz consórcio com oliveiras nas entrelinhas e arredores, além de pinheiros para sombrear a uva e proporcionar aromas especiais pela composição que fica no solo e vai para as raízes dos vinhedos.
A ligação da empresária com o universo dos vinhos começou ao acaso. Ela queria ser enfermeira, mas sempre amou o campo, o que a levou estudar enologia. “Sou uma mulher de aldeia e do campo”, define. Sua família sempre morou na área rural na região da Bairrada, mas dedicava-se apenas a cultivos de subsistência.
Ela conta que só se convenceu e se apaixonou de fato pela vitivinicultura quando um professor da faculdade, na disciplina de ciências agrárias, falou sobre a parte agronômica do cultivo das uvas. “Foi um despertar para o que é agricultura”, lembra.
Saiba-mais taboola
Daí em diante, Sónia trabalhou em uma renomada marca portuguesa, a Cabriz, e participou da criação do projeto brasileiro Rio Sol, de vinhos oriundos do sertão de Pernambuco, de 2003 a 2008. Na época, a experiência do ‘sangue vinícola’ português ajudou a planejar e executar a produção da bebida no Vale do Rio São Francisco, um desafio, segundo a enóloga.
Depois dessa experiência no Brasil, em 2018, foi criada a Lusovini, que hoje tem presença nos Estados Unidos, Angola e Moçambique, mas é o território brasileiro o foco de expansão de negócios da empresa.
Região do Dão
Por trás da tradição, sistemas agrícolas têm sustentado a produção iniciada há mais de dois mil anos pelos fenícios, que implementaram no país as primeiras técnicas de cultivo.
Hoje, uma das regiões mais conhecidas pela produtividade das uvas tintas é o Dão, que fica no Vale do D’Ouro, às margens do rio homônimo. No lugar, a touriga nacional é a variedade de uva que se destaca. A cepa, também cultivada no Brasil, no Rio Grande do Sul, internacionalizou a cultura vitivinícola dos lusos.
Hoje, 50% das uvas plantadas no Dão são da variedade touriga nacional, que também é a mais versátil para compor os blends e manter a identidade de sabor da região, analisa Sónia Martins.
Produção e exportação
De acordo com os dados provisórios da instituição responsável pela promoção vinícola do país ibérico, ViniPortugal, a produção de vinho na safra 2024/25 atingiu os 690 milhões de hectolitros, uma quebra de 8% em comparação com a temporada anterior. Foram 21,4 milhões de litros na região do Dão, produção que caiu 23,9%, sobre os 28,12 milhões de litros do ciclo anterior.
O Brasil foi o terceiro principal mercado de importação de vinho português, comprando 5,7 milhões de litros de janeiro a março deste ano. O país só fica atrás da França e dos Estados Unidos. No total, Portugal exportou 80,5 milhões de litros nesse intervalo, movimentando 217,9 milhões de euros na balança comercial.