Da janela de casa, próxima ao porto de Ilhéus, no sul da Bahia, o engenheiro agrônomo George Sodré sente um cheiro azedo, que lembra chulé. A catinga, que ressurge a cada três ou quatro meses, tem como origem amêndoas mal fermentadas a bordo de navios egressos da Costa do Marfim que atracam no cais.
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“Por que um país como o Brasil ainda precisa importar cacau?”, pergunta-se o agrônomo, um sujeito alto, magro e tagarela, que emenda um assunto no outro em sua fala acelerada, com pronunciado sotaque do litoral baiano.
Mais do que o futum que viaja com os navios marfinenses, o que o incomoda é que o Brasil hoje tenha que trazer o cacau, a principal matéria-prima dos chocolates, de longe – e trata-se, afinal, de um fruto de origem amazônica, do qual o país já foi o maior produtor no planeta.
Com as importações, o Brasil compensa o déficit na produção de cacau que se estabeleceu desde o surgimento da vassoura de bruxa, doença que derrubou a produção nacional do fruto a partir do início dos anos 1990.
Cacau no cerrado: fruto avança em áreas não tradicionais
A cultura ainda sofre com a ação do Moniliophthora perniciosa, o fungo causador da doença, mas, hoje, a cacauicultura nacional tem diante de si a perspectiva de voltar a ser referência internacional, o que alimenta até um certo otimismo, que não se via na atividade há muito tempo.
Um dos marcos dessa mudança de humores foi a criação, em 2023, do Plano InovaCacau 2030, uma iniciativa da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), do Ministério da Agricultura, em parceria com o CocoaAction Brasil. O plano apresenta diretrizes para que a colheita nacional, que atualmente é de menos de 200.000 toneladas de cacau, ultrapasse a marca de 400.000 toneladas até 2030, quando o Brasil voltaria a ser autossuficiente na produção.
Com camisetas, cadernetas, panos de prato e outros adereços temáticos, o conversador George Sodré nem precisa falar para mostrar sua paixão pelo cacau e sua convicção de que o futuro da cultura é promissor. Mas nem sempre ele encarou a cultura com otimismo. Hoje doutor em produção vegetal, pesquisador e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), ele também já foi produtor.
O agrônomo George Sodré tentou produzir cacau no fim dos anos 1990. Hoje, ele dedica-se a cultura como professor e pesquisador
Arquivo pessoal
“Tentei plantar cacau por anos em 10 hectares, junto com meu pai, mas não tínhamos assistência. Os preços estavam ruins, e não tivemos como seguir.” Ele conta que, quando fez seu primeiro plantio, em agosto de 1999, o preço médio da tonelada era de US$ 790. “Não pagaria nem para colher a fruta hoje”, compara. Atualmente, a cotação da amêndoa no mercado internacional está na casa de US$ 8.000.
Os relatos de quem viveu os apertos decorrentes da vassoura de bruxa nas últimas décadas são frequentes. No auge da produção, em meados da década de 1980, o Brasil chegou a responder por 25% da colheita mundial. Mas, poucos anos depois, já sob a influência da doença na Bahia, o principal Estado produtor, e também por causa do forte declínio dos preços da amêndoa no mercado internacional, em decorrência do aumento das exportações de países da África, a produção nacional do fruto caiu pela metade.
Desde então, o Pará despontou como grande produtor, e, hoje, baianos e paraenses respondem por 95% da produção brasileira, de 182.000 toneladas na safra 2023/24, de acordo com a Organização Internacional do Cacau (ICCO, na sigla em inglês). Esse volume não cobre a demanda local, de cerca de 300.000 toneladas ao ano, segundo o Ministério da Agricultura.
Fruto originário da bacia hidrográfica do Rio Amazonas, o cacau disseminou-se e chegou às regiões tropicais das Américas Central e do Norte, onde entrou em um processo de domesticação e cultivo. Segundo historiadores, colonizadores portugueses introduziram a planta no Pará em 1679. Há registros de que sementes da fruta chegaram ao município de Canavieiras, na Bahia, em 1746, e, em 1752, a Ilhéus. No Pará, o cultivo ocorre a pleno sol, um modelo de nome autoexplicativo.
“Ao longo dos últimos 40 anos, a Bahia viu seu apogeu e seu fracasso. E o Pará, do nada, virou um grande produtor”, diz Pedro Ronca, diretor do CocoaAction Brasil. Já a Mata Atlântica, onde ficam Ilhéus e Canavieiras, concentra áreas hoje conhecidas como “tradicionais”, nas quais predomina a cabruca, um sistema de agrofloresta, em que cacaueiros ficam sob a sombra de árvores nativas do bioma. A prática incentiva a coexistência do fruto com outras culturas e ajuda a preservar a floresta.
As projeções que integram o Plano InovaCacau, que preveem produção mais de duas vezes maior do que a atual até 2030, quando o Brasil voltaria a ser autossuficiente, partem de três pressupostos centrais: aumento de produtividade nas áreas atuais, plantio também em propriedades de grande porte – hoje, micro, pequenas e médias proriedades dominam a produção – e expansão da cultura em locais em que ela ainda não está presente. O “ciclo migratório” do cacau já começou: com ele, surgiram plantios em regiões consideradas como não tradicionais, como o Cerrado e a Caatinga.
Isso inclui o quente oeste da Bahia, área onde hoje reinam culturas como soja e algodão. Há pouco mais de três anos, o fruto passou a fazer parte da paisagem da área da Schmidt Agrícola, em Riachão das Neves (BA), ao lado de lavouras de soja, milho e algodão. E não se trata de uma ação ocasional: o plano do grupo é transformar a Fazenda Santa Helena na maior lavoura de cacau do mundo. No momento, a cultura ocupa cerca de 400 hectares com irrigação, mas a meta é chegar a 5.000 hectares.
As primeiras lavouras plantadas já começaram a dar frutos, e a produtividade tem ficado entre 900 e 1.200 quilos por hectare. “Isso é muito superior à média das áreas tradicionais, onde hoje a produtividade gira em torno de 330 quilos por hectare”, relata o produtor Moisés Schmidt. O objetivo, segundo ele, é chegar a 4.500 quilos por hectare em cinco anos.
O produtor Moisés Schmidt tem a ambição de transformar a Santa Helena, em Riachão das Neves (BA), na maior fazenda de cacau do mundo
Schimidt Agrícola
A expansão do cacau em áreas não tradicionais começou há cerca de cinco anos, conta Schmidt. Esse movimento deve adicionar 500.000 hectares de lavouras irrigadas em dez anos, segundo integrantes da indústria, o que faria o Brasil produzir cerca de 1,5 milhão de toneladas no mesmo período. Em 2023, as plantações brasileiras de cacau ocuparam 612.000 hectares, segundo as estatísticas mais recentes da FAO, a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação.
O cultivo de cacau na Fazenda Santa Helena faz parte de uma parceria com a multinacional americana Cargill. A engenheira agrônoma Angélica Guimarães, coordenadora de produção da Schmidt Agrícola, gerencia o projeto e tem na ponta da língua os detalhes de cada canto da lavoura.
Para ela, a tecnologia que se aplica no negócio é o diferencial que assegura eficiência. “Mecanizamos aplicação de defensivos, poda, distribuição de adubo e a roçagem da braquiária. Só não mecanizamos ainda a colheita”, afirma.
A agrônoma Angélica Guimarães entrou no Grupo Schmidt em 2022 para trabalhar com soja, algodão e milho. Um ano depois, ela passou a se dedicar às plantações de cacau
Marcos Fantin
O ciclo longo do cacau exige paciência. Diferentemente do que ocorre com soja e milho, em que o intervalo entre o plantio e a colheita é de menos de quatro meses, o fruto leva cerca de cinco a sete anos para gerar retorno financeiro.
No modelo a pleno sol, o investimento para o plantio de 1 hectare gira em torno de US$ 35.000 (ou R$ 195.000) nos três primeiros anos. Em um sistema agroflorestal, as despesas são de cerca de R$ 60.000. Renovar uma área de cabruca, por sua vez, custa R$ 45.000.
No modelo a pleno sol, o Grupo Schmidt encurtou o período produtivo para a planta frutificar mais rapidamente. Essa aceleração é resultado de um conjunto de fatores, como radiação solar, irrigação e uso de variedades mais produtivas, que têm sido desenvolvidas nos últimos anos em iniciativas públicas e privadas.
A sociedade com a Cargill limita-se aos 400 hectares, mas ambas as empresas não descartam avanços, a depender da rentabilidade do negócio. A parceria parte da premissa de desenvolver protocolos para a produção de cacau altamente produtivo e mecanizado.
De acordo com Bruno Chlebe, diretor de originação e trading da Divisão de Alimentos da Cargill na América do Sul, os investimentos iniciais no projeto foram de cerca de US$ 10 milhões — Cargill e Schmidt dividiram o aporte em partes iguais. Se houver demanda no mercado, os desembolsos poderão crescer.
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Gigantes chocolateiras também decidiram apostar nesse novo modelo de negócio. Responsável por comprar cerca de 40% da produção nacional todos os anos, a suíça Nestlé quer liderar a revolução do cacau no Brasil, afirma Patrício Torres, vice-presidente da Divisão de Chocolates e Biscoitos da empresa no país.
Entre 2023 e 2025, a companhia investiu R$ 2,7 bilhões em chocolates e biscoitos no país. Segundo o executivo, a meta é investir de três a quatro vezes mais nos próximos 15 anos, o que totalizaria por volta de R$ 10 bilhões.
“Nosso desejo é que todo chocolate produzido pelaNestlé no Brasil seja feito 100% com o cacau brasileiro. Acreditamos que é possível, senão não estaríamos fazendo investimentos tão grandes”, diz. O Brasil é o maior negócio para chocolates e biscoitos da Nestlé no mundo: volume e faturamento são mais do que o dobro dos que a companhia obtém no Reino Unido, o segundo maior.
Segundo Torres, a companhia está perto de firmar acordos com grandes fazendas, de mais de 1.000 hectares, localizadas em áreas não tradicionais. O executivo ressalta que investidores não terão interesse em financiar um negócio que produza menos que 500 quilos por hectare. “Eu vi fazendas de 800 hectares que estão produzindo 2.000 quilos por hectare. Chegar a 3.000, 4.000 quilos por hectare é necessário e possível”, observa.
Os esforços para fazer com que o Brasil volte a ser autossuficiente na produção de cacau contam com empresas e empreendedores que têm presença já bem estabelecida no país, mas também há quem tenha vindo de longe para apostar na cultura.
Localizado em plena Caatinga, o município de Barra, também no oeste baiano, banhado pelos rios São Francisco e Grande, sedia o projeto da Peirot Agronegócios, que conta com investidores de Israel.
O israelense Tal Bar Dor, diretor de operações da empresa, chegou ao país em 2013 com a ideia de ficar pouco tempo, “só para sentir o clima”, mas acabou se apaixonando em dose dupla: pela tranquilidade de Barra e por Gleise Melo, gerente de sustentabilidade da Peirot, com quem se casou e tem hoje dois filhos. “Quem chega a Barra e toma a água do Rio Grande se apaixona e não quer mais sair”, diverte-se Gleise. Dor completa: “O agro no Brasil me trouxe uma nova vida, daquelas que a gente nem sabia que estava procurando, mas que quando encontra sabe que fez a escolha certa”
O projeto começou em 2010 com plantio de mamona. Ao longo dos anos, a Peirot testou várias outras culturas, entre elas melão, milho-verde, milho para silagem, batata-doce, abóbora e mandioca. “Vimos que o solo dava tudo o que plantávamos, então decidimos apostar na fruticultura”, conta o produtor.
O plantio de cacau é recente. Os estudos começaram em 2019, mas o cultivo teve início apenas em 2023, em um sistema com sombreamento de bananais. Na primeira área, de 7,5 hectares, a Peirot plantou as bananas, e, cinco meses depois, o cacau. Depois, a empresa decidiu retirar a banana e a manter o cacau a pleno sol.
A partir dessa mudança, o projeto concentrou-se no cultivo de cacau sem sombreamento e sem consórcio. Entre março e julho de 2024, a Peirot fez o plantio em mais 45 hectares e, em 2025, adicionou 53 hectares. Segundo o diretor israelense, isso vai encurtar o ciclo do fruto, o que permitirá à companhia fazer a colheita já no segundo ano.
Atualmente, a Peirot cultiva frutas em 16.000 hectares. A empresa tem a expectativa de alcançar produtividade no cacau dez vezes maior do que a média nacional, de 330 quilos por hectare. “Pretendemos chegar a 1.000 hectares de cacau em cinco anos. Depois, chegar a 5.000 hectares até 2035”, revela Rafael Marques, gerente operacional da Peirot Agronegócios. “Enxergamos o Brasil voltando a ser o maior produtor de cacau do mundo em até dez anos”, frisa.
Em Barra, no oeste da Bahia, a Peirot Agronegócios pretende chegar a 1.000 hectares de cacau em cinco anos
Peirot Agronegócios
Anna Paula Losi, presidente-executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), acredita que as novas áreas de cultivo podem fazer com que o Brasil volte a exportar cacau no futuro. “A produtividade média dessas áreas pode mudar o patamar da produtividade brasileira, que hoje ainda é muito baixa”, avalia.
A expectativa dela é que, a partir de 2026 ou 2027, os grandes projetos comecem a ter impacto efetivo sobre os volumes de cacau que a indústria recebe. “Aí, sim, veremos uma recuperação mais consistente”, completa.
A expansão territorial da cultura não ocorre apenas na Bahia. Após tentativas malsucedidas na década de 1970, produtores de São Paulo têm trabalhado para retomar o cultivo de cacau em áreas de transição entre Cerrado e Mata Atlântica. Os esforços começaram em 2014, quando a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), órgão ligado à Secretaria de Agricultura do Estado, lançou um programa para fomentar o plantio na região de São José do Rio Preto.
Na época, o intuito era ajudar na produção de borracha, que vivia uma forte crise emdecorrênciado aumento da produção no Sudeste Asiático, que derrubou os preços da matéria-prima.
“São Paulo produz 65% da borracha natural consumida no Brasil, e 90% disso vem da região de São José do Rio Preto”, observa Ricardo Pereira, coordenador da Cati. À procura de culturas que pudessem entrar em consórcio com a seringueira, a equipe técnica, inspirada nos bons resultados do sistema cabruca na Bahia, teve a ideia de plantar cacau.
“No sul da Bahia, a cabruca é cultivada na sombra da Mata Atlântica. Aqui, nós temos a sombra da seringueira com uma temperatura bem parecida. A única diferença é que não temos umidade, mas temos irrigação e água disponível”, afirma Pereira.
Situada entre os rios Tietê, ao sul, e Negro, ao norte, São José do Rio Preto também é cortada pelo rio que dá nome à cidade e por seus afluentes. Além disso, o território do município fica sobre o Aquífero Guarani.
Com luz, temperatura e umidade adequadas para o cultivo, os resultados positivos começaram a aparecer. Hoje, há cerca de 60 produtores de cacau na região. A maioria deles fez os plantios nos últimos quatro anos, em sistemas de consórcio com seringueira e banana.
Nesse modelo, os produtores plantam as árvores de cacau nas entrelinhas da seringueira, intercalando as mudas do fruto com os pés de banana. Estes fornecem sombra nos primeiros três anos e geram receita suficiente para pagar o investimento necessário para o plantio, que fica entre R$ 40.000 e R$ 60.000 por hectare.
Há quatro anos, o produtor de laranjas Norival Osvaldo Puglieri decidiu testar o sistema da Cati em parte da sua propriedade em Marcondésia, a 90 quilômetros de São José do Rio Preto. Ele começou a fazer sua primeira colheita agora em 2025. O volume ainda é pequeno, mas o agricultor diz estar confiante de que terá um bom resultado. “É um projeto que parece que vai dar certo na região”, afirma.
Na sua propriedade em Marcondésia (SP), o citricultor Norival Puglieri plantou mais de 5.000 mudas de cacau; 560 delas estão cultivadas a pleno sol em áreas de laranja que foram erradicadas pelo greening
Rogério Albuquerque
Ao todo, a propriedade tem mais de 5.000 mudas de cacau, mas 560 delas, distribuídas em meio hectare, recebem tratamento especial, já que têm um componente de inovação, diz Puglieri. Inspirado nos resultados que produtores têm obtido no oeste da Bahia, ele está testando, com apoio da Cati, o plantio a pleno sol em áreas de laranja que foram erradicadas pelo greening, a doença que mais causa prejuízos à citricultura nacional.
“Há anos eu venho observando que o cacau é a cultura que mais se parece com a laranja. Há uma semelhança muito grande no espaçamento, na irrigação, na colheita manual e na poda”, detalha o citricultor.
Nesse primeiro experimento, ele está testando o desempenho de três diferentes variedades de cacau mantidas em irrigação por gotejamento, tal como já ocorria com a laranja. “Eu acredito que esse modelo vai ser o que mais vai se disseminar aqui na nossa região porque a produtividade a pleno sol será muito maior do que se o cacau estiver no meio de uma seringueira ou de qualquer outra coisa”, avalia.
Puglieri salienta que, com a iniciativa, sua intenção não é abandonar a citricultura, mas diversificar suas atividades no campo. “A nossa família está no agronegócio desde 1897, quando meus bisavós chegaram da Itália. Nós já plantamos café, milho, arroz, feijão, mas a citricultura foi fundamental para nós. Com ela conseguimos ampliar áreas, e a família conseguiu se estabilizar”, conta o agricultor.
Desde que assumiu a propriedade, há 13 anos, ele já incluiu cana-de-açúcar, borracha e mogno-africano na lista de culturas às quais a fazenda se dedica. “Me chamaram de louco, mas temos que diversificar”, diz. “Se só tivéssemos laranja, hoje estaríamos numa situação complexa.”
Segundo o chefe de divisão da Cati Regional de São José do Rio Preto, Fernando Miqueletti, a expectativa é de que o sucesso de Norival atraia o interesse de outros produtores de laranja e os faça considerar o cacau como alternativa para as áreas em que a citricultura acabar ficando inviável. O órgão tem oferecido diferentes sistemas de consórcio para os demais agricultores.
“Nós não indicamos um único modelo. Em vez disso, trabalhamos com a realidade de cada produtor. Se ele quiser trabalhar no modelo que envolve outras culturas, temos outros sistemas que podem incluir o açaí e a mandioca, por exemplo”, destaca Miqueletti.
Além de abrir caminho para a disversificação da renda dos produtores e de melhorar o aproveitamento da terra, a disseminação do plantio de cacau na região também tem como objetivo desenvolver uma rota turística entre as cidades de Mendonça e Adolfo.
O primeiro esforço da Cati nessa frente ocorreu entre 2020 e 2021, quando o órgão distribuiu mudas para pequenos agricultores ao longo da estrada que liga os dois municípios. “A ideia é incluir essa rota dentro do turismo que já existe na região e mostrar às pessoas que existe cacau no noroeste paulista”, afirma o chefe regional da Cati.
Desanimado com a pecuária, Diego Francisco da Silva convenceu os pais a plantarem um hectare de cacau em Mendonça (SP).
Rogério Albuquerque
Embora muitos produtores tenham perdido as mudas, alguns pés ainda resistem ao longo da estrada. “Esse projeto está vivo, o pessoal ainda quer montar uma rota do cacau”, assegura Diego Francisco Ferreira da Silva.
Com 25 anos e desanimado com a pecuária, ele convenceu os pais a plantarem 1 hectare em consórcio com bananas há um ano na propriedade em Mendonça. Até 2026, quando projeta colher 3 toneladas, a previsão é dobrar essa área para abastecer a produção de chocolates de sua mãe, que há dez anos atua como confeiteira.
“Em toda Páscoa eu faço ovos [de chocolate]. Neste ano, eu fiz com o meu chocolate, e o sabor é outro. O industrial tem muita gordura, e esse da gente não. Só tem a manteiga, e é muito pouco, só para lubrificar a máquina na hora de início do processo”, relata Jucileide Persegil da Silva. Com a experiência que já acumulou, ela prefere colher com as próprias mãos o cacau in natura de produtores da região, abrir o fruto e secar as amêndoas.
Ao todo, ela produziu 80 quilos de chocolate neste ano, o que permitiu à confeiteira reduzir em cerca de 30% o custo com a produção de ovos de Páscoa. “O cacau foi um divisor de águas para nós, tanto do ponto de vista familiar quanto econômico, porque conseguimos manter toda a família ao redor de uma única atividade”, destaca Diego.
Apesar de não ter sido um produto tão dominante na economia brasileira ao longo da história, como foi o caso, por exemplo, da cana-de-açúcar, cultura que moldou a vida do país durante um século e meio nos tempos de Brasil Colônia, o cacau teve um papel marcante na história do Brasil, em particular na Bahia.
A amêndoa protagonizou o chamado Ciclo do Cacau, um dos ciclos-chave da economia brasileira, sequência de períodos históricos que perdurou até o fim da República Velha, em 1930. O ciclo, que foi o primeiro grande boom do cultivo do fruto, ocorreu entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Foi um período de surgimento dos “coronéis”, uma elite agrária do sul da Bahia que se concentrou principalmente nos municípios de Ilhéus e Itabuna e figurou em livros de autores consagrados, como Jorge Amado.
Jucileide da Silva produz o fruto com a família e fabrica chocolate
Rogério Albuquerque
“O doutor não era doutor, o capitão não era capitão. Como a maior parte dos coronéis não eram coronéis. Poucos, em realidade, os fazendeiros que, no começo da República e da lavoura do cacau, haviam adquirido patentes de coronel da Guarda Nacional. Ficara o costume: dono de roça de mais de mil arrobas passava normalmente a usar e receber o título que ali não implicava em mando militar, e sim no reconhecimento da riqueza”, descreve Jorge Amado sobre os coronéis em Gabriela, Cravo e Canela.
O ciclo de prosperidade chegou ao fim com a quebra na Bolsa de Nova York, em 1929, que derrubou os preços internacionais da amêndoa e paralisou o comércio global. “Há relatos de que os burros levavam o cacau até as canoas no porto de Ilhéus para exportação, mas, quando a carga chegava ao porto, o exportador ouvia que o mercado não estava mais comprando cacau. E, para os burros não voltarem carregados, os donos das fazendas jogavam o cacau no rio”, relata o professor e pesquisador George Sodré, da Uesc.
Já o segundo momento de protagonismo do cacau brasileiro estendeu-se entre as décadas de 1970 e 1980, quando o país chegou a produzir 400.000 toneladas – o pico foi na safra 1984/85 – em um momento em que os preços no mercado internacional circundavam US$ 4.000 por tonelada. Na época, o Brasil cultivava 649.000 hectares com o fruto, segundo as estatísticas da FAO.
Foi nesse segundo ciclo que a cacauicultura nacional começou a sofrer com a vassoura de bruxa, que continua a afetar as plantações e é considerada até hoje uma das pragas que mais causam prejuízos à cadeia. Presente em quase todos os países produtores de cacau da América Tropical e Central, a vassoura representou uma das principais causas do declínio da cacauicultura no Brasil a partir de 1989.
A praga afeta diversas partes do cacaueiro, como os brotos vegetativos, as almofadas florais e os frutos, deixa as folhas ressecadas, com aspecto de uma vassoura – daí o nome –, e derruba a produtividade das árvores. Mesmo em longas distâncias, é disseminada pelo vento por qualquer parte da planta infectada, como folhas, frutos, hastes, mudas e sementes.
Até hoje, o surgimento da vassoura de bruxa no Brasil é um tema cercado de polêmicas e controvérsias. Apesar de ser conhecida na região Amazônica desde o início do século XX, ela nunca tinha atingido o sul da Bahia. Uma das hipóteses que se levantaram para a disseminação da doença no estado que dominava amplamente a produção nacional é de que a chegada teria sido resultado de terrorismo biológico. A suspeita ganhou força quando virou objeto de investigação da Polícia Federal e de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa da Bahia nos anos 2000.
Atualmente, a maior preocupação dos técnicos da Ceplac é a monilíase, afirma Paulo Marrocos, coordenador-geral de pesquisa e inovação do órgão Ceplac. A doença, que se espalha de maneira muito mais acelerada do que a vassoura, já dizimou plantações de cacau em países como Equador e Peru e também está presente no Brasil, mas restrita a plantações no Acre e Amazonas.
Marrocos descreve como “visionárias” algumas das iniciativas de desenvolvimento da cultura em áreas não tradicionais, de Cerrado e Caatinga, por exemplo, mas não deixa de destacar que incentiva a adoção de agroflorestas. Esses sistemas oferecem conforto térmico para a planta e, no oeste baiano, são uma defesa contra os ventos fortes da região.
Preços históricos
O interesse no cultivo do cacau no Brasil ganhou força especialmente nos últimos dois anos, quando os preços da amêndoa atingiram picos históricos na Bolsa de Nova York. Em 2024, nenhuma commodity agrícola valorizou-se tanto no mercado internacional quanto o cacau: a alta foi de 150%, segundo levantamento do Valor Data.
Em julho de 2023, os preços médios em Nova York foram de US$ 3.366 por tonelada. Após consecutivos aumentos, o preço da amêndoa atingiu seu recorde no fechamento do dia 18 de dezembro de 2024, quando alcançou US$ 12.565 a tonelada. Em julho de 2025, a média de preços rondava os US$ 8.000.
A alta brusca deveu-se a uma combinação de fatores na África Ocidental, responsável por cerca de 60% da produção global de amêndoas, sendo 40% na Costa do Marfim, que produziu 1,6 milhão de toneladas na safra 2023/24, e 20% em Gana, que chegou a 530.000 toneladas, segundo a Organização Internacional do Cacau (ICCO). Em relação à temporada anterior, os volumes representaram quedas de 28,6% e de 19%, respectivamente.
África concentra maiores volumes de produção mundialmente
Daniel das Neves
As lavouras africanas enfrentaram períodos prolongados de seca e chuvas fora de época, que interferiram diretamente na frutificação dos cacaueiros. Além disso, as árvores envelhecidas já não produzem como antes e são mais vulneráveis às doenças que avançaram na região. Do lado de quem produz, há desinteresse de muitos produtores em prosseguir na cultura, já que as formas de negociação, que são geridas pelos governos, não vêm favorecendo o repasse dos altos valores até o campo.
O mercado global é outro fator de pressão, já que a demanda por chocolate e outros derivados do cacau continua aquecida e indica um déficit de cerca de 400.000 toneladas. Segundo a ICCO, a produção mundial foi de 4,5 milhões de toneladas na safra 2023/24, enquanto a moagem da indústria somou 4,9 milhões de toneladas.