
Uma sequência de fusões, aquisições e anúncios de expansões na indústria de lácteos no primeiro semestre do ano evidenciou uma transformação que ocorre no setor. Com o consumo de leite fluido praticamente estagnado no país e as margens baixas na categoria, o queijo tornou-se aposta de algumas empresas pelo maior valor agregado e a demanda crescente.
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“Isso não é uma coisa que está acontecendo só no Brasil. Já vemos isso acontecendo em outros países há algum tempo”, observa a pesquisadora do Centro de Inteligência do Leite da Embrapa, Kennya Siqueira. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Lácteos Longa Vida (ABLV) citados pela pesquisadora, houve alta de 4% no volume de leite destinado à produção de queijo no Brasil em 2024 — na média dos dez anos anteriores, o avanço fora de 1,5%.
Alguns dos principais negócios anunciados nos últimos meses foram a compra da gaúcha Deale pela Scala e a estreia da catarinense Aurora Alimentos, no mercado de queijos nobres com a aquisição da Gran Mestri, de Guaraciaba (SC). Segundo a Aurora, a aquisição vai gerar uma receita adicional da ordem de R$ 230 milhões ao ano. O plano é agregar valor ao leite que recebe das cooperativas filiadas, ampliando a produção de queijos finos da Gran Mestri. A cooperativa ainda vai produzir queijo ralado e manteiga com a marca Aurora.
No Nordeste do país, a líder regional Alvoar já anunciou que expandirá sua produção, o que inclui possíveis fusões e aquisições. Além disso, o Laticínio São Vicente, com operação consolidada no segmento de queijos mofados, recebeu aporte da Persa Investments em maio. O grupo é controlador da Só Leite Brasil (SLBR), empresa com captação de 11 milhões de litros de leite por mês, mas com pouca participação no mercado de queijos.
Segundo o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (ABIQ), Fabio Scarcelli, o maior interesse da indústria pela produção de queijo acompanha o potencial desse mercado no país. Com um consumo per capita anual de sete quilos, as vendas têm crescido cerca de 3% ao ano. A meta do setor, afirma Scarcelli, é que o consumo por habitante chegue a 10 quilos ao ano até 2030.
Dados da Nielsen mostram que as vendas de queijo cresceram aproximadamente 15% em valor e 10% em volume em 2024 comparado a 2023, enquanto as de leite longa vida subiram 8% em valor e 3% em volume no mesmo período.
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A ABIQ estima que a produção nacional de queijos cresceu 6% em volume no último ano, para 1,46 milhão de toneladas. A entidade atribui o resultado ao aumento de renda da população após um período de pouca expansão após a pandemia.
“Todos do setor enxergam que existe um potencial muito grande para um aumento no consumo de queijo e nas vendas desse produto nos próximos anos”, diz Scarcelli.
Consolidação do setor
Juliana Pila, analista de inteligência de mercado da Scot Consultoria, avalia que o ganho de escala é um dos fatores que motivam a consolidação do setor. “Energia, embalagens, frete. Os custos estão ficando mais altos e difíceis de repassar ao consumidor. Ao ganhar escala, os custos fixos são diluídos”, observa.
Outro fator é a capilaridade. Muitas vezes, as aquisições são feitas em Estados onde a empresa ainda não atua, permitindo acesso a novas bacias leiteiras e a presença em mercados consumidores considerados mais estratégicos. “Os concorrentes acabam seguindo o mesmo caminho para não perder relevância”, acrescenta a analista.
Apesar do crescimento recente, Pila pondera que o consumo de lácteos dá sinais de redução, por conta da desaceleração da economia. Do lado da oferta, a produção de leite não está diminuindo na entressafra como em anos anteriores. “Vemos o setor varejista pressionando as indústrias porque não conseguem vender todo o estoque. E vemos os laticínios pressionando o produtor”, disse a analista.
O levantamento mais recente do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, mostra que o preço do leite captado em maio fechou a R$ 2,6431 o litro na média Brasil, queda de 3,9% sobre abril e de 7,4% em termos reais sobre maio de 2024.
Conjuntura
Na avaliação de Scarcelli, o atual contexto do mercado também favorece a movimentação das empresas. “Como o mercado não está bom, as empresas que estão um pouco mais estabilizadas e capitalizadas estão aproveitando o momento para fazer essas aquisições”, observa. Outra motivação está na competição pela matéria-prima, o leite cru.
“Como o leite está muito disputado no campo, adquirir outro laticínio é a forma mais rápida de uma empresa aumentar a sua bacia leiteira e sua captação sem precisar inflacionar o preço do leite no campo”, pondera o dirigente.
Diante disso, ele avalia que as fusões e aquisições seguirão ocorrendo no setor ao longo dos próximos anos, mas de forma mais discreta. “Há algum tempo essas fusões e aquisições vêm ocorrendo, mas como o número de indústrias é muito grande, então não se percebe muito”, diz.
O sócio de um laticínio, que prefere manter seu nome em sigilo, diz que a série de aquisições feitas pela Lactalis nos últimos dez anos para chegar à liderança do setor obrigou outros grandes competidores a se movimentarem para manter sua relevância.
Um terceiro fator, afirma, foi o endividamento do setor. “Quem estava com endividamento alto, com a [taxa básica de juros] Selic a 15% ao ano, precisou vender para não quebrar”, diz a fonte. Ele cita o caso da Coca-Cola, que vendeu a operação da Verde Campo em 2024 à Emmi Group, por meio da subsidiária Laticínios Porto Alegre, devido à dificuldade de obter as margens de lucro desejadas.