Há exatos 50 anos, o Proálcool transformou lavouras em fonte de energia. Essa é a história do programa que fez do Brasil um gigante dos combustíveis O empresário Maurilio Biagi Filho misturava álcool-anidro com gasolina muito antes de isso virar praxe. “Quando chegava o caminhão da Exxon para abastecer os carros na usina, eu dava uma gorjeta para o cara da transportadora”, relembra. “Assim, ele também descarregava álcool na bomba”.
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Um dia, quando os planos do governo militar de estimular a produção de álcool combustível no país já estavam em andamento, membros da equipe do presidente Ernesto Geisel visitaram a Usina Santa Elisa, que então pertencia aos Biagi, para conhecer a produção. Orgulhoso da inovação, que era também uma traquinagem, o empresário achou que não podia perder a chance de revelá-la às autoridades. “Eu falei para o general: ‘Vou apresentar a você uma bomba clandestina de álcool’.”
Dos grandes ciclos econômicos da história do Brasil, o da cana-de-açúcar foi um dos mais longevos. A planta, de origem asiática, chegou ao país pelas mãos de Martim Afonso de Sousa, o primeiro donatário da Capitania de São Vicente, em 1532, e o plantio teve tanto sucesso que deu origem à primeira organização produtiva do Brasil Colônia: nos 150 anos seguintes, a produção da gramínea dominou a economia local.
Os portugueses chegaram ao território nacional em 1500, mas, nos primeiros 30 anos, limitaram-se a esquadrinhar a nova terra e a extrair pau-brasil, sem preocupação em criar uma estrutura para permanência. Foi com a produção de cana que a colônia de fato começou a tomar forma.
Muito antes de Maurilio Biagi Filho “dar uma gorjeta ao cara da transportadora” e apresentar uma bomba clandestina de álcool a um general, cana foi sinônimo exclusivamente de açúcar: a planta é uma fonte barata de produção de energia para consumo humano.
Mas, no século XIX, vários países começaram a impor controles sobre a produção e importação de açúcar – tal como ocorre no mercado do petróleo – para proteger suas indústrias, prática que se mantém no mercado de açúcar até hoje.
Plantação de cana-de-açúcar em Porteirão (GO): originária da Ásia, a espécie é parte indissociável da história do Brasil desde 1532
Jô Carvalho
O Brasil utilizava a cana para produzir aguardente desde os tempos de colônia, e já nos anos1920 se produzia álcool combustível a partir da planta, mas foi em1931, no governo de Getúlio Vargas, que surgiu o primeiro dispositivo legal prevendo uma mistura de álcool na gasolina.
A ideia de estruturar uma indústria para transformar o álcool de fato em uma alternativa à gasolina ganhou corpo na Segunda Guerra Mundial, que afetou o abastecimento global, lembra Henry Joseph, diretor da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Todas essas iniciativas ajudaram a dar forma ao Programa Nacional do Álcool (Proálcool), o grande divisor de águas da indústria nacional de biocombustíveis, que surgiu há exatos 50 anos.
Os primórdios
Os relatos históricos sempre relacionam a criação do Proálcool ao primeiro choque do petróleo, de 1973, masquem viveu de perto a gestação do programa conta que mesmo antes o governo militar já discutia uma política de apoio aos usineiros.
Plinio Nastari, atualmente especialista que é a maior referência do setor, e que na época era estudante de doutorado, conta que os preços do açúcar sofriam fortes oscilações por causa das medidas protecionistas dos países, passando rapidamente de 5 centavos de dólar peso para 50 centavos de dólar a libra-peso.
Quando um grupo de revolucionários tomou o poder em Cuba, então o maior exportador de açúcar do mundo, e o país alinhou-se ao bloco soviético, abriu-se um vácuo no mercado global da commodity . Prontamente, surgiram vários planos do governo brasileiro para incentivar a expansão dessa indústria. A fatura chegou em 1964, quando uma crise de sobreoferta derrubou os preços.
O Proálcool não foi o programa do álcool, mas o programa de apoio à cana-de-açúcar
Em uma das tentativas de recuperar o setor, o general Castello Branco reuniu os técnicos dos principais ministérios para criar incentivos antes que a presidência da Junta Militar expirasse. Em uma reunião no primeiro andar do Palácio do Catete em 15 de fevereiro de 1967 , o último dia do governo de Castello Branco, os técnicos debatiam o tema quando o general desceu as escadas e disse: “Um avião está esperando isso para levar para Brasília para editar o Diário Oficial. Comecei o meu governo com um grande problema no setor do açúcar, e infelizmente estou terminando sem resolver. Então, sejam ousados”.
Quem ainda hoje lembra da fala do militar é Shigeaki Ueki, que na época assessorava Paulo Egydio Martins, então ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Naquela tarde de 1967 , os técnicos elaboraram um decreto-lei que basicamente retirou restrições ao setor para atender a um pedido da Petrobras, que precisava aumentar a oferta de álcool como opção ao tetratolueno para melhorar a octanagem da gasolina.
Ele [Ernesto Geisel] sabia que, depois de um novo pico, os preços [do açúcar] voltariam a cair
Alguns anos depois, a gangorra do mercado oscilou de novo e, em 1974, os preços chegaram a 44 centavos de dólar a libra-peso. Segundo Nastari, que foi próximo de Ernesto Geisel, presidente no ano de lançamento do Proálcool, essa situação na verdade preocupou o general. “Ele sabia que depois viriam preços baixos”, conta.
Hoje com 89 anos, Ueki, que se tornaria o responsável por comandar o ministério de onde saiu a minuta do primeiro decreto que criou o programa, concorda: “O Proálcool não foi o plano do álcool, foi o plano da cana-de-açúcar”.
Um ano antes, em 1973, os países árabes, afetados pela liberalização do dólar com o fim do padrão-ouro e pressionados pela Guerra de Yom Kipur, de Israel contra Egito e Síria, decidiram cortar a produção e retaliar os Estados Unidos. Isso fez com que o preço do barril, que por anos oscilou na faixa entre US$ 1 e US$ 2, chegasse a US$ 10 em questão de dias.
O primeiro choque do petróleo abalou o crescimento global, e o Brasil não ficou de fora. Quem liderava o Ministério de Minas e Energia era justamente Ueki, que aceitou o convite de Geisel e, para enfrentar a crise, tomou algumas medidas emergenciais: ele fechou os postos de combustível nos fins de semana e limitou a velocidade máxima nas rodovias para 80 quilômetros por hora. “Acima disso, o consumo de gasolina ficava menos eficiente”, justifica ainda hoje.
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Mas essas ações não eram suficientes. Era preciso uma solução de longo prazo. Em uma conversa de cinco horas com a Globo Rural em seu escritório no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, Ueki lembra da reprimenda e do pedido que ouviu de Geisel: “Você já tentou outras vezes criar um programa de incentivo ao álcool. Agora você não pode falhar.”
Ueki decidiu consultar primeiro os empresários do segmento, como Lamartine Navarro, Maurilio Biagi e Cicero Junqueira Franco. Biagi pai e outros usineiros acabaram elaborando o relatório “Fotossíntese como fonte energética”, em que traçaram as principais medidas para que o álcool ganhasse espaço na matriz energética brasileira.
O documento, de 46 páginas, propôs, em suma, duas soluções: primeiro, incentivo às usinas de açúcar para que construíssem destilarias de álcool anexas, para aproveitar as lavouras e a estrutura de moagem de cana que já tinham, e, em um segundo momento, incentivo à construção de destilarias autônomas.
Ueki recebeu o documento e foi consultar o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), órgão criado em 1933 a partir do lobby da indústria do açúcar sobre o governo de Getúlio Vargas. O IAA controlava com rédea curta a oferta e a demanda do açúcar e do álcool. “Mas o preço do açúcar também tinha subido muito. Eu pedi mais álcool, mas quase me colocaram para fora”, relata o ex-ministro.
A solução, conta, foi recorrer à chefia do IAA, o Ministério da Indústria e do Comércio. Quem acabou dando apoio a Ueki para a elaboração do decreto foi Paulo Belotti, então secretário-geral da Pasta. Após um ano de trabalho de Ueki e Belotti e de uma reunião com todos os ministros em Brasília, Geisel baixou, em 14 de novembro de 1975, o decreto 76.593, que instituiu o Proálcool.
O nascimento
Com 14 artigos, o decreto previu juros subsidiados para investimentos em lavouras de cana e em destilarias e estabeleceu paridade de preços entre o álcool e o açúcar: o valor que o IAA pagava às usinas para cada saca de 60 quilos de açúcar também deveria ser pago para cada 44 litros de álcool.
Além disso, o Conselho Nacional do Petróleo (CNP) ficaria responsável por distribuir o álcool e estabelecer seu preço ao mercado. Os recursos dessas vendas serviriam para bancar o subsídio aos investimentos.
A Copersucar entrou em campo para apoiar a expansão dos canaviais. Em 1969, a cooperativa, que representava quase 70% das usinas do segmento, havia criado o Centro de Tecnologia da Copersucar (CTC), que depois viraria o Centro de Tecnologia Canavieira, atualmente uma empresa de capital aberto. “Trouxeram variedades do Havaí, da Austrália e da África do Sul”, conta Luis Roberto Pogetti, atual presidente do conselho da Copersucar. A estratégia, diz ele, era reunir as melhores variedades dos trópicos para melhorar a produtividade e diminuir o custo.

Paulo Ferrari
Doze anos após os primeiros desenvolvimentos, em 1982, o CTC criou a variedade SP70-1143. “Foi uma variedade fundamental no Proálcool. Era adaptada ao ambiente mais restritivo e viabilizou a expansão [do canavial] para o interior de São Paulo para além do eixo da Anhanguera”, diz Luiz Antonio Paes, atual diretor operacional do CTC. “Sem esse desenvolvimento, talvez o Proálcool não tivesse crescido com tanta rapidez”, avalia.
Segundo Pogetti, foi graças às variedades do CTC que o custo de produção caiu 40% em poucas décadas. Mas como nem tudo é unanimidade, há usinas que veem até hoje impactos negativos do Proálcool.
A Petribu, de Lagoa de Itaenga, na Zona da Mata de Pernambuco, que nasceu como engenho em 1729 e é a indústria sucroalcooleira mais antiga do país ainda em operação, continuou a priorizar a fabricação de açúcar, mantendo o álcool como produto secundário. “Acho que o Proálcool talvez tenha até estimulado a concorrência por cana e indiretamente aumentado os nossos custos”, diz Jorge Petribu, presidente do conselho da empresa.
Jorge Petribu, presidente do conselho da Usina Petribu: a empresa continua a priorizar a fabricação de açúcar desde sua fundação, em 1729
Jô Carvalho
Outro desdobramento do Proálcool foi a expansão territorial da cana-de-açúcar na Região Nordeste. O programa foi o motor para o avanço dos canaviais na Zona da Mata pernambucana, afirma Djalma Euzebio Simões Neto, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador da Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa). “A Zona da Mata tem 1,8 milhão de hectares de terra. No auge do Proálcool, a área de cana nessa região se aproximou de 530.000 hectares”, afirma o professor.
T alvez o Proálcool tenha estimulado a concorrência por cana e até aumentado nossos custos
Renato Cunha, presidente do Sindicato da Indústria do Açúcar de Pernambuco (Sindaçúcar), lembra que, antes da criação do programa, a indústria sucroenergética do Nordeste concentrava-se principalmente em Pernambuco e Alagoas. “A partir do Proálcool, a atividade ganhou corpo em áreas de outros estados, como Rio Grande do Norte e Paraíba”, afirma ele.
A expansão das destilarias exigia a criação de uma indústria de base para construir as plantas necessárias. Foi aí que entraram novamente os Biagi. Então donos da Zanini Equipamentos Pesados, Maurilio Biagi e seu filho atuavam principalmente na oferta de reparos de equipamentos industriais, mas a demanda crescente por novas plantas fez a companhia desenvolver o conceito de “chave na mão”: a Zanini entregava a destilaria completa ao empresário.
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Com essa estratégia, a indústria dos Biagi bateu a concorrente Dedini e tornou-se a maior fabricante de destilarias do Proálcool, chegando a erguer 70% das destilarias construídas na época.
A primeira usina fruto do Proálcool foi Miriri Alimentos e Bioenergia, de Santa Rita, próximaao litoral paraibano. “O Proálcool abriu não só possibilidade definanciamento, mas de uma novafronteira agrícola. Com esses re-cursos, pudemos investir no plantio na região costeira”, descreve Gilvan Celso Cavalcanti de Morais Sobrinho, presidente da Miriri.
Os investimentos no setor começavam a dar frutos. De 1975 a 1979, a produção de álcool passou de 556 milhões de litros para 3,4 bilhões de litros, e o preço do álcool começou a ficar mais atrativo na competição com a gasolina. Foi aí que a criatividade e a necessidade do brasileiro se uniram. “As pessoas começaram a colocar álcool no carro que era a gasolina”, conta Francisco Nigro.
Fuscas, Corcéis, Chevettes e Brasílias em posto de combustível do Rio de Janeiro, em 1979
Rogério Reis/Agência O Globo
Atualmente professor da Escola Politécnica da Universidadede São Paulo (USP), Nigro recebeu um convite do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) em 1977 para chefiar o laboratório de máquinas que se tornou responsá-vel por testar soluções para o uso de álcool nos veículos.
Ainda antes do primeiro decreto do Proálcool, o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), liderado pelo professor Urbano Stumpf, já vinha testando a conversão de motores a gasolina para motores a álcool. Stumpf morreu em 1998.
No IPT, os pesquisadores desenvolveram um mode-lo de conversão de um motor de Fusca e ensinavam as retíficas de motores a “receita do bolo”. “Eles preparavam o motor, levavam para o IPT, a gente testava, e, se satisfizesse os critérios, a retífica era autorizada a fazer a conversão”, conta. A memória que Nigro guarda da época é até de diversão. “A gente fazia corridascom os carros movidos a álcool na Marginal do Pinheiros [via de São Paulo de alta velocidade] de madrugada”, lembra.
E, para engajar os consumidores, os pesquisadores iam além. “Fazíamos passeatas de carro a álcool para convencer a população.” Quem prontamente aderiu à novidade foram os taxistas e as empresas com frota própria. Em São Paulo, a Telesp chegou a conver-ter toda a sua frota, recorda Henry Joseph, da Anfavea.
O choque
Quatro anos depois do decretode criação do Proálcool, o merca-do global de energia sofreu um novo abalo. A Revolução Iraniana, que defenestrou o governo pró-Ocidente no país, o segundo maior exportador de petróleo do mundo, jogou o preço do hidrocarboneto para as alturas. Isso agravou a crise de abastecimento de petróleo.
No Brasil, o governo já se preparava para o pior. O ministro da Fazenda de Geisel, Mário Henrique Simonsen, dirigiu-se ao Salão do Automóvel, em São Paulo, onde tinha um encontro marcado com o então presidente da Anfavea Mario Garnero. “Ele mechamou para sentar no banco de trás de um carro, tirou do paletó uns papéizinhos e disse: ‘Dá uma olhada aqui’”, lembrou Garnero em um encontro com a Globo Rural no jardim de sua mansão, em Campinas (SP).
Os papéis reuniam orientações não para racionar os combustíveis, mas sim a produção de automóveis. “Não vai ter jeito, o Brasil vai quebrar”, confidenciou Simonsen. Preocupado, o executivo retrucou: “Em 15 dias, vou apresentar um projeto para você”.
Garnero consultou os executivos das fabricantes associadas à Anfavea para saber se elas conseguiriam apresentar um plano para a produção de carros movidos a álcool já de fábrica. As europeias Volkswagen e Fiat, então líderes de mercado no Brasil, logo toparam, mas as americanas Ford e General Motors se opuseram.Nos dias seguintes, as discussões foram intensas para sensibilizar os americanos, que acabaram aceitando.
Garnero conta que as reações no governo não foram unânimes. Na presidência do Conselho Nacional do Petróleo (CNP), que regulava a Petrobras, o general Ozielde Almeida teria dito em um encontro: “Eu nunca vi um plano mais tão antipatriótico do que esse”. Outro entrevero teria sido com Ueki, que no governo do general João Figueiredo, o sucessor de Ernesto Geisel, havia assumido a presidência da Petrobras.
Segundo Garnero, dias antes de uma reunião no Conselho Nacio-nal de Energia (CNE), logo após aterrissar no aeroporto de Congonhas chegando de Brasília, pousou também o avião de Figueiredo.“Fiz a volta e fui cumprimentá-lo.Ele me perguntou ‘tudo bem?’, e eu disse: ‘Nem tudo. Não vai sair o projeto do carro a álcool. A Petrobras não quer’.”
Ainda segundo Garnero, nesse momento, o general teria chamado seu ajudante de ordens, o major Dias Dourado, e dito: ‘Ligue ao ministro [de Minas e Energia César] Cals. Diga que se a Petrobras não votar a favor do projeto, o Cals e o japonesinho do Geisel estão demitidos”. Os demais envolvidos nessa conversa não estão mais vivos. Ueki nega ter se oposto à ideia e diz que nunca recebeu nenhuma pressão do Figueiredo que tratasse do carro a álcool.
Fato é que, em setembro de 1979, o governo Figueiredo e as montadoras associadas à Anfavea assinaram um documento que Henry Joseph guarda até hoje em seu escritório: já amarelada pelo tempo, a peça está embalada e envolta em uma moldura dourada. Meses antes, a Fiat saiu na frente e lançou o primeiro modelo de carro a álcool de fábrica, o Fiat 147.
Linha de montagem do Fiat 147, o primeiro carro a álcool de fábrica produzido no país: montadoras europeias abraçaram a ideia logo de cara, e americanas ficaram reticentes
Fiat/Divulgação
Em poucos anos, 70% dos carros vendidos no Brasil eram movidos a álcool. Fez parte dessa popularização uma campanha publicitária da Copersucar, que custou US$ 25 milhões, e dizia: “Carro a álcool, você ainda vai ter um”.
Uma década mais tarde, após uma sequência de crises do programa, galhofeiros não perderam a piada, adaptando o slogan para “carro a álcool, você ainda vai querer se livrar de um”.
A derrocada
No fim da década de 1980, o cenário era outro. O barril do petróleo voltou a custar menos de US$ 10, a Petrobras até exportava gasolina, e no Brasil a inflação nadava de braçada. Na indústria de cana-de-açúcar, a expansão das usinas fez disparar não apenas a produção de álcool, que chegou a 12 bilhões de litros em 1989, mas também a de açúcar, que naquele ano alcançou 7,2 milhões de toneladas, um volume 20% maior do que o de 15 anos antes.
Em abril de 1989, começaram, então, a surgir faixas em alguns postos de combustível com a mensagem “não tem álcool”. Essa foi a fase mais polêmica do Proálcool. A Petrobras, que administrava os estoques de álcool nas usinas, acusava os usineiros de não querer ofertar álcool, priorizando, em vez disso, a produção de açúcar.
Os usineiros afirmavam que havia produto e que a Petrobras é que não queria comprar. Segundo plínio Nastari, a acusação da Petrobras era inverossímil. “O IAA estabelecia cotas, as usinas só cumpriam.” Joseph tem outra visão:“Como não era mais governo militar, o pessoal não tinha mais medo de ser preso se não cumprisse”.
Em 1990, o problema se repetiu, mas de maneira ainda mais grave. Certo dia, indignado, Maurilio Biagi Filho foi ao terminal da Esso em Ribeirão Preto. “Eu falei para o diretor: ‘Olha, aqui em Ribeirão não vai faltar, eu coloco álcool em um tanque de água e despejo aqui no seu tanque’. Acho que, por causa do meu voluntarismo, ele ficou com pena, me convidou para a sala dele, me serviu um café e falou ‘Maurilio, isso aqui é uma coisa programada’.”
Biagi Filho diz que lembra até hoje do documento que o diretor lhe mostrou em seguida: um papel timbrado do Departamento Nacional de Combustíveis (DNC) orientando as distribuidoras a recolherem apenas metade da cota do mês.
O empresário não ficou com o documento, mas saiu da reunião e convocou a imprensa para fazer a denúncia.“Os jornalistas se acotovelavam”, lembra. Uma repórter, então, lhe perguntou quanto haveria de álcool nos estoques reguladores, ao que ele respondeu que o volume era de 272 milhões de litros. “Chutei. Eu não tinha ideiade quanto era”, admite ele hoje, aos risos. Meses depois,o DNC verificou os estoques e constatou que havia até mais: eram 300 milhões de litros.
Diariamente, a Petrobras declarava que os usineiros não estavam fabricando álcool para poderem produzir e exportar açúcar. Em maio de 1990, o governo de Fernando Collor extinguiu o IAA, mas as usinas só passaram a ter autonomia para exportar açúcar em 1991, relembra Nastari, para quem todas as crises do Proálcool foram fabricadas.
Biagi Filho avalia que, em 1990, talvez a oferta realmentenão fosse suficiente para atender a toda a demanda que se projetava, mas ele nega que as exportações de açúcar tenham sido a causa do problema.
No governo federal, a decisão foi, então, reduzir a mistura de álcool na gasolina para os carros a gasoli-na, e adotar a mistura “ternária”, com gasolina, etanol de cana e metanol. Na academia, o IPT dedicou-se a pesquisar outros combustíveis, como ésteres de óleos vegetais e metanol de madeira, em parceria com a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), conta Nigro.
O consumidor ficou indignado, se sentiu traído. Eu nunca vi uma reação tão passional quanto aquela
Entre as usinas, a preocupação com a reputação do álcool era tanta que a Copersucar aceitou a ideia deimportar metanol da Europa e da África do Sul paramostrar que o segmento era capaz de garantir o abastecimento. Mas não adiantou. “Aquilo causou uma indignação no consumidor, que se sentiu traído. Eu nunca vi uma reação tão passional”, recorda Biagi Filho.
Os carros flex e o futuro
O uso do álcool como combustível passou por um ocaso na década de 1990. Na surdina, porém, muitos brasileiros já começavam a colocar álcool no tanque quando achavam vantajoso, ainda que tivessem carros a gasolina, e quem tinha carro a álcool às vezes testava a gasolina quando o preço estava melhor.
Em 1998, a Bosch lançou um sistema de injeção eletrônica que permitiria a um motor rodar com gasolina ou etanol, sem necessidade de conversão. O dispositivo, porém,era caro e ainda estava mais voltado para a realidade dos EUA, onde a preocupação era com o uso do E85 (15% de gasolina e 85% de etanol). Em 2003, a Magneti Marelli lançou outra tecnologia, mais barata e afeita à realidade local. No mesmo ano, a Volkswagen saiu na frente e lançou o primeiro modelo flex do Brasil, um Gol.
Do início dos anos 2000 para cá, a produção de etanol quase triplicou, passando de 13 bilhões de litros para 36 bilhões de litros ao ano, e a produção de açúcar, que era de 19 milhões de toneladas anuais, chegou a 44 milhões de toneladas.
Para Gilvan Morais Sobrinho, diretor-presidente da Miriri, o enfraquecimento das políticas para o etanol e também a desvalorização do produto mudaram o perfil de produção da indústria sucroenergética.
O executivo Gilvan Morais Sobrinho, da Usina Miriri: cenas e personagens de um dos segmentos que deram ao país as feições atuais
Jô Carvalho
“Especialmente nos últimos dois anos, houve um descasamento na oferta do biocombustível como advento do etanol de milho. Como produzir esse etanol é mais barato, ele deixa uma margem melhor, o que faz desse produto um concorrente muito forte do álcool de cana”, avalia o executivo. “Eu preciso gerar receita líquida para os negócios, e se continuar apostando em produto que paga menos do que o custo de produção, vou quebrar”, pontua.
Daniela Petribu Oriá, presidente da Usina Petribu: ela diz que poderia destinar 20% da cana que processa para a produção de etanol, mas que, no momento, o açúcar vale mais a pena
Jô Carvalho
Com o momento delicado para o mercado do etanol,a pioneira Usina Petribu, de Pernambuco, reforça seu DNA açucareiro. Daniela Petribu Oriá, de 55 anos, presidente e primeira mulher a comandar a empresa após oito gerações, conta que poderia destinar até 20% de sua cana para a produção de etanol, mas que, no momento, não há vantagem competitiva para a empresa fazer essa mudança.
Com o preço do açúcar em um patamar que ela considera bom, a estratégia da companhia é priorizar a produção de açúcar – como tem feito há quase 300 anos.
Trabalhadores no processamento de cana
Jô Carvalho
Para a executiva, a indústria precisa comunicar melhoras vantagens do uso do biocombustível. “Hoje, muitas pessoas pagam mais para ter uma verdura orgânica, mas nem sempre estão dispostas a gastar nenhumcentavo a mais para ter um combustível mais limpo se ele não atender à conta dos 70% [a equivalência do preço do etanol na comparação com a gasolina]. Talvez essa seja uma deficiência do próprio setor, que não soube fazer o marketing certo em cima do etanol”, diz.
É possível que a indústria não tenha feito o marketing certo para apresentar as vantagens do etanol para o consumidor
Para Jorge Petribu, tio de Daniela, é possível pensar em novas tecnologias feitas a partir da cana. “Será que nos próximos 100 anos ainda vamos fabricar açúcar ou já teremos um produto feito a partir de uma nova composição química? Teremos muito mais avanços nos próximos 50 anos do que nos 300 anos anteriores”, projeta