Em Santa Cruz do Rio Pardo (SP), que não tem um só pé do grão, indústrias beneficiadoras que faturam bilhões respondem por 25% do cereal que o Estado consome Sentados em volta de uma mesa grande, um grupo de empresários pressiona o garçom: “Que arroz vocês usam por aqui?”. Sem jeito, o funcionário do restaurante se esquiva: “Todos na cidade são ótimos, por isso variamos as marcas”. O diálogo segue com risadas entre empresários rivais, que nao por acaso são também parentes e amigos. O cenário é Santa Cruz do Rio Pardo, cidade do interior paulista onde nunca se cultivou uma única touceira de arroz, mas que ostenta o título de capital estadual do cereal.
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O município tem seis das maiores indústrias de arroz do país fora do Rio Grande do Sul, e a atividade é apontada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como a maior responsável pelo PIB per capita de R$ 57.800 em 2022. O segmento é também a razão de o salário médio do município ser de 2,5 mínimos, mais alto que em cidades maiores nas limitações de Santa Cruz, como Marília ou Ourinhos.
Por lá, o preço da saca e se o presidente americano, Donald Trump, vai taxar as importações, permeiam as conversas não só dos encontros dos empresários nos restaurantes, mas também da população de 50.000 habitantes nas praças e pequenas ruas.
À Globo Rural, o gerente do restaurante comenta: “Não posso dizer qual marca uso no restaurante para não criar inimizade entre clientes e familiares dos Pegorer”. Não por acaso, a família Pegorer em vários ramos de descendência é dona de todas as indústrias de arroz da cidade.
Em meados de 1960, netos e trinetos dos imigrantes italianos que se instalaram por lá começaram a comercializar o cereal dentro do Estado para aproveitar duas oportunidades que chegaram ao mesmo tempo: o início do cultivo de arroz por gaúchos em Mato Grosso do Sul e a instalação de uma fábrica de equipamentos beneficiadores na cidade, a Suzuki.
“Além de uma indústria de máquinas ter surgido por aqui, esses precursores do negócio se beneficiavam da logística entre o polo produtor e o mercado consumidor paulista”, conta Fernando Zaia, um dos diretores da Brasília Alimentos, empresa que é dona da marca Solito. Na época, havia uma ferrovia que ligava o interior de São Paulo ao Rio Grande do Sul, o que facilitava o transporte do cereal entre os dois Estados.
Os precursores do negócio na cidade se beneficiavam da logística entre o polo produtor o mercado consumidor
Fernando é trineto de Francisco e Maria Pegorer, imigrantes italianos que chegaram a Santa Cruz do Rio Pardo e deram origem às famílias que fundaram as indústrias São João Alimentos, Guacira, Solito e Rosalito (comprada neste ano pela Kicaldo). Curiosamente, apesar do parentesco e da amizade entre os integrantes de todas as famílias, nunca cogitaram fundir os negócios. “Acho que todos temos um pouco de receio de perder o controle do que conquistamos”, afirma Ângelo Zaia, da Solito Alimentos.
Dividir mesas, encontros e festas, porém, não é problema. A partir de 1980, o retorno positivo da atividade fez brotar dezenas de beneficiadoras de arroz no Estado, sendo 27 em Santa Cruz do Rio Pardo. Com o tempo, muitas fecharam as portas ou passaram por processos de fusão. Agora restam 12, sendo seis na cidade, que, juntas, respondem por 25% do arroz consumido em São Paulo e 4% do consumo nacional (sem falar da exportação). Desses 25%, São João, Guacira e Solito detêm uma fatia de 80% do mercado.
A São João Alimentos quer ampliar sua atuação no mercado interno e também no exterior para aumentar o faturamento
Thais Balielo/SAL
Por essa história, Santa Cruz do Rio Pardo se tornou no ano passado (por meio da lei 17.879) a capital do arroz de São Paulo. A atividade das indústrias colabora para que a média salarial apareça no 162º lugar no Estado e na posição 558 no ranking nacional.
Todo esse desempenho econômico se materializou em ruas asfaltadas e bem conservadas, em estabelecimentos comerciais diversos e, como é característico em muitas cidades do interior do país, em uma praça com um coreto no centro. Nenhum dos Pegorer é diretamente responsável por essa infraestrutura porque ninguém enveredou para a política em todos esses anos. “Só falta mesmo uma variedade maior de restaurantes”, comenta Marcos Vinícius Pegorer, que administra a São João Alimentos junto com seu pai.
Na cidade só tem o trivial para comer, e o arroz, que está sempre presente nessas refeições, continua longe dos campos. Nas lavouras de Santa Cruz, há produção de laranja, soja, milho e cana-de-açúcar. Apesar disso, não tem um único santa-cruzense que não pense em como a queda dos preços do arroz pode afetar sua vida.
Em 2024, com os preços recordes do cereal, as empresas do segmento cresceram 20% em média, além deterem desengavetado investimentos. Um ano depois, a cotação do cereal caiu 30%, o que tem feito a mente dos executivos das empresas locais fervilhar de ideias.
As estratégias para garantir metas e rentabilidade variam da diversificação de portfólio à exploração de novos mercados externos. Aliás, em tempos de guerra comercial entre Estados Unidos e grandes nações, alguns relatos afirmam que os canadenses começaram acotar preços do arroz brasileiro.
Das 12 indústrias beneficiadoras de arroz no Estado de São Paulo, seis estão em Santa Cruz do Rio Pardo
Thais Balielo/SAL
“Foi a primeira vez que empresas do Canadá nos telefonaram. Ainda nada concreto aconteceu, mas, como eles compram arroz dos Estados Unidos e estão nessa briga de taxas, é possível que saia algum negócio”, afirma Adalberto Pegorer, sócio e filho de um dos fundadores da Santa Cruz Alimentos. A companhia, criada em1968 por dois irmãos, entre eles o pai de Adalberto, e um primo, faturou R$ 1,06 bilhão no ano passado, o que representou um aumento de 25% em relação a 2023.
Primos distantes dos Pegorer da São João, os fundadores da Guacira Alimentos são otimistas nos volumes para 2025 e querem crescer 5%. Entretanto, imaginam uma queda no faturamento entre 20% e 25% em razão dos preços do arroz. Em 2024, o faturamento da empresa ficou em R$ 390 milhões, sendo que as exportações representaram 7% dos recursos.
A Guacira comercializa arroz com os Estados Unidos e tem medo de que as decisões políticas atrapalhem seu mercado consolidado. “Esperamos que o Brasil não seja taxado nas vendas de arroz para os americanos, porque perderemos um mercado que compra produto de qualidade, beneficiado e empacotado”, analisa Mario Eduardo Figueira Pegorer, gerente comercial da empresa. Ele é neto de um dos sócios fundadores da Guacira e hoje toca os negócios com o tio Antonio Pegorer e outros primos.
Antonio conta que ele e Adalberto, da São João, foram os primeiros da cidade (há controvérsias) a buscar lotes de arroz em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso para comercializar em São Paulo e, por isso, criaram empresas beneficiadoras.
Mas a Guacira tem uma estratégica diferente para conquistar mercado. Em vez de explorar commodities, como arroz e feijão, quer ser conhecida por comercializar um portfólio mais amplo. Entre os produtos oferecidos pela empresa estão azeite, palmito, café, goiabada, tapioca, farinha, massas, queijo ralado, sal e açúcar.
Em 2024, a Guacira Alimentos faturou R$ 390 milhões; as exportações representaram 7% da receita da companhia
Thais Balielo/SAL
vEsperamos que o Brasil não seja taxado nas vendas aos americanos, porque perderíamos um mercado que compra produto de qualidad
A Brasília Alimentos também tem sua história mesclada com a da cidade, o comércio de arroz e a família Pegorer. Primos ainda mais distantes dos sócios da São João e da Guacira, os três fundadores da Brasília comercializavam arroz e café na região nos anos1960. Com a geada histórica de 1975/76, que destruiu as plantações de café, os sócios focaram só no cereal. Hoje, a empresa tem uma das marcas mais conhecidas de arroz do Estado, a Solito, e registrou um faturamento de R$ 1,2 bilhão no ano passado.
Diferentemente de seus pares, a estratégia da Brasília é explorar todo o potencial do arroz e criar subprodutos, como farinha de arroz e premix (mistura de arroz fortificado com vitaminas e minerais) para a indústria de alimentação, farmacêutica e de ração animal. “O consumo de arroz vem caindo no país, e precisávamos criar estratégias para crescer nesse cenário”, relata Fábio Zaia, um dos três diretores da Solito, junto com seus primos, filhos dos fundadores da Brasília.
As empresas de arroz de Santa Cruz do Rio Pardo têm unidades no Sul do país, região que concentra 70%da produção do cereal no Brasil. Mas todas, principal-mente a Solito, trazem arroz do Paraguai, porque a logística e os preços compensam mesmo com o dólar alto.
Volta e meia, esses empresários dividem a mesma mesa nos restaurantes da cidade e até nas festas (que o digam os 70 anos de Adalberto Pegorer) – e ali, entre garfadas e risadas, a velha pergunta ressurge: “Que arroz vocês usam por aqui?”.