
A indústria brasileira de pescado ainda tem um longo caminho para estar alinhada aos princípios de transparência, ética e sustentabilidade que o consumidor contemporâneo demanda. É o que aponta a segunda edição do Observatório do Peixe, relatório elaborado pela ONG Alianima, organização de proteção animal sem fins lucrativos que atua em colaboração com líderes da indústria alimentícia para identificar e enfrentar os principais gargalos da cadeia de produção animal.
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“Consumidores mais informados e conscientes querem entender a origem dos alimentos. E, nesse cenário, a produção de tilápia e o salmão têm muito a melhorar”, afirma Caroline Maia, especialista em peixes da Alianima.
Embora ainda não existam regulamentações ou normas no Brasil que contemplem aspectos relacionados ao bem-estar na piscicultura, observa-se uma pressão crescente por práticas mais responsáveis no manejo de animais aquáticos, especialmente no que se refere ao abate humanitário.
A União Europeia, por exemplo, conta com diretrizes que, apesar de incompletas em alguns aspectos, reconhecem a necessidade de evitar dor e sofrimento dos peixes nesse momento do processo produtivo, o que representa um ponto de atenção para o Brasil, que tem na Europa um mercado estratégico para exportação.
Inspiração mundial
Na avaliação de Francisco Medeiros, presidente executivo da Peixe BR, o setor ainda estuda como melhorar o bem-estar animal dos peixes. “O Ministério da Agricultura fez recentemente uma consulta pública para tratar sobre o tema. Estamos aguardando a publicação da portaria para sabermos exatamente como devemos proceder, haja vista que não há legislação no Brasil que trate deste tema para peixes de cultivo”, diz.
O executivo acredita que buscar inspiração nos maiores produtores mundiais, como por exemplo a China, pode ser um bom caminho para a indústria nacional.
Nesta segunda edição do Observatório do Peixe, a Alianima detalhou como práticas adequadas de criação, manejo, transporte, abate e certificações podem transformar o setor, especialmente no caso da tilápia-do-Nilo e do salmão-do-Atlântico.
Saiba-mais taboola
No caso da tilápia, que é o peixe mais consumido do Brasil, embora a espécie seja resistente, condições inadequadas de criação e manejo comprometem seu crescimento e reprodução. O relatório aponta que as altas densidades nos tanques, o transporte inadequado e o processo de abate, que não é humanitário, são problemas recorrentes no setor.
“Essas condições favorecem o estresse, aumentam a incidência de doenças e ampliam a necessidade de medicamentos”, diz Maia.
De acordo com a especialista, no Brasil o abate é feito com a colocação dos peixes em gelo ou em água gelada, o que é extremamente complicado porque causa um sofrimento muito prolongado. “O ideal é que o peixe fique inconsciente antes do abate”, recomenda.
Qualidade do alimento
Outros problemas como a qualidade da água e da alimentação também são fatores que comprometem a saúde e o bem-estar dos peixes e, por extensão, a qualidade do alimento que será consumido.
Quanto ao salmão-do-Atlântico que chega ao Brasil principalmente do Chile, a produção intensiva em tanques-redes instalados em mar aberto gera impactos ambientais significativos. Entre eles estão a eutrofização das águas (poluição hídrica provocada pelo excesso de nutrientes), a degradação do solo marinho e o risco de fuga de peixes exóticos, com potenciais consequências ecológicas graves.
Outro ponto crítico, segundo o estudo, é o uso frequente de antimicrobianos, prática comum na produção intensiva de tilápia e salmão para controlar infecções bacterianas. O relatório alerta que o uso excessivo pode gerar contaminação ambiental, acelerar a resistência bacteriana e representar riscos à saúde humana.
A recomendação é restringir o uso de medicamentos apenas para tratamentos, sob supervisão veterinária, privilegiando a prevenção por meio de boas práticas de manejo.
“Esses antimicrobianos, por caírem direto no corpo d’água, estão em contato direto com bactérias que estão ali e isso pode provocar a aceleração do surgimento das superbactérias, que a gente sabe que é um problema enorme hoje em dia”, explica.
Certificações e protocolos
Como solução para os problemas identificados, a Alianima recomenda a adesão a certificações e protocolos de bem-estar animal que incorporam práticas mais éticas e sustentáveis no setor. No Brasil, a Certified Humane lançou recentemente normas específicas de bem-estar para a tilápia e para o salmão-do-Atlântico, sinalizando um movimento de amadurecimento do setor frente às novas demandas.
“O bem-estar dos peixes não é apenas uma questão ética, mas também estratégica: consumidores, certificadoras e mercados internacionais têm elevado seus padrões, exigindo cada vez mais responsabilidade e rastreabilidade. A adoção de boas práticas baseadas em ciência e alinhadas às diretrizes internacionais pode representar uma vantagem competitiva real para o setor aquícola brasileiro”, declara.





