
Depois de duas décadas de trabalho na Trousseau, marca nacional de artigos de cama, mesa e banho de luxo, Martina Sgarbi abandonou a carreira de gerente financeira para se tornar produtora de queijos artesanais. O que começou como um hobby em 2017, sustentado pela busca por uma alimentação mais natural, se transformou em um negócio pioneiro: Martina acaba de inaugurar a primeira queijaria artesanal regularizada da capital paulista.
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Consumidora contumaz de queijos, Martina passou a produzi-los em 2017 quando decidiu retirar de sua dieta os alimentos ultra processados. “Eu estava comendo apenas itens naturais e o queijo era o único produto que eu ainda comprava em supermercados”, conta. Passou então a experimentar receitas de produção caseira. Mais tarde em uma viagem para Minas Gerais, realizada no mesmo ano, Martina descobriu a importância do leite cru, do controle de ambiente e da maturação. “Aprendi que não dá para fazer queijo com leite de caixinha”, lembra.
Desde então não parou mais de testar. Aos finais de semana, criava receitas na propriedade da família em Parelheiros, na zona Sul de São Paulo, às margens da represa do Guarapiranga, com leite comprado na vizinha Embu Guaçu. “Todo sábado ia buscar 80 litros de leite e ficava o final de semana brincando”, conta.
Martina Sgarbi, proprietária da queijaria Martina Artesanal, de São Paulo (SP)
Thiago de Jesus/Globo Rural
Rapidamente Martina se apaixonou pela produção artesanal. Talvez por isso o reconhecimento tenha vindo tão cedo. Já em 2018 ela resolveu enviar o queijo cremoso de fermentação natural para o Prêmio Brasil de Queijos Artesanais. Ganhou medalha de bronze no concurso. “Foi um susto. Não esperava, fiquei muito animada. Nessa época comecei a pensar em um plano negócios, pois eu ainda não vendia os queijos, fazia apenas para a família, dava de presente aos amigos”, conta.
Queijeira em tempo integral
A decisão de pedir demissão da empresa de enxovais veio em julho de 2019. “Eu só pensava em fazer queijos, fiz até uma câmera de maturação no meu apartamento. Percebi que precisava me organizar melhor”, conta. Decidiu, então, investir parte do valor da rescisão do seu contrato de trabalho em uma viagem para Europa em busca de mais conhecimento.
“Aqui no Brasil os cursos são muito focados na produção industrial eu queria algo bem artesanal”, diz. Na Itália frequentou o Instituto de Culinária Italiano, na Calábria, para aprender a fazer queijo à mão e “na e França, aprendi a afinação do produto, a maturação, a cura, a forma de lavar os queijos”, recorda.
De volta ao Brasil, após sugestão de amigos queijeiros e diante da possibilidade de usar parte das instalações do laticínio “Campo em Casa”, fixou-se em Boituva, onde pôde começar a produzir comercialmente em um laticínio com inspeção municipal. “Ali, amadureci meu negócio”, diz Martina, que em 2023, obteve o selo Arte, concedido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).
O selo é concedido após uma rigorosa averiguação que atesta que o produto alimentício foi elaborado de forma artesanal.
Embora estivesse bem instalada em Boituva, Martina tinha o sonho de montar sua queijaria na propriedade da família em Parelheiros, onde funciona a empresa Eko Eventos, também administrada por ela.
Mas produzir queijos artesanais na capital paulista não é fácil, demanda uma série e idas e vindas com a burocracia e com os órgãos de inspeção. “Eu não posso, por exemplo, ter vacas soltas aqui apesar de ter espaço. Poderia ter vacas confinadas, mas eu não acho que esse sistema de produção é legal para os animais, então prefiro pegar o leite de produtores de fora da cidade que criam o animal solto”, conta.
Mudança na regulamentação
Além de aprender a fazer queijos, Martina teve que entender o funcionamento e conhecer “as dores” do setor. Para isso se filiou à Associação Paulista de Queijo Artesanal (APQ) e a partir de 2020 militou por mudanças regulamentais junto ao governo estadual em favor das queijarias artesanais, como a publicação da Resolução SAA 63, de setembro de 2023, que, entre outras coisas, aprovou procedimentos de registro, reforma e ampliação de estabelecimentos registrados sob a forma artesanal junto ao Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Estado de São Paulo (CIPOA).
“Antes disso, as regras eram as mesmas para as grandes indústrias e pequenas queijarias, o que excluía os pequenos. Nos inspiramos muito no avanço das cervejarias artesanais”, conta. Martina explica, por exemplo, que o limite diário de produção para caracterizar escala artesanal definido pelo SISP-Registro de estabelecimento artesanal, é de até 1.500 litros de leite. “Um volume irrisório se comparado às grandes indústrias de lácteos”, comenta.
Com a nova regulamentação abriu-se a possibilidade de instalar queijarias em áreas urbanas e rurais da capital. Martina foi a primeira a conseguir uma licença. “Embora a resolução que aprova o registro de queijarias artesanais seja de 2023 eu só obtive a licença definitiva em junho de 2025”, conta a produtora, que recém inaugurou sua queijaria de 30 metros quadrados na propriedade dos pais.
Localizada em Parelheiros, a Martina Artesanal, produz atualmente cerca de 250 quilos de queijo por mês, feitos a partir de 600 litros de leite semanalmente trazidos de Boituva. São nove variedades no portfólio, que já conquistou 8 medalhas em concursos de melhores queijos, entre elas o Marmoratto, queijo de casca lavada na cachaça artesanal e urucum, maturado por quatro semanas; o Cremoso, de maturação média de três semanas, macio e de fermentação natural; e o Cerva, de maturação média de dois meses e casca lavada várias vezes na cerveja artesanal larger.
Atualmente, o faturamento da empresa gira em torno de R$ 45 mil mensais, ainda reinvestidos no negócio. Mas o maior ganho, segundo Martina, está em preservar a essência artesanal. “Eu não quero ser indústria. O que me dá prazer é estar lá dentro, virando o queijo, lavando a casca, acompanhando cada etapa”, afirma.
Apesar disso, o trabalho de Martina nunca se resumiu a feitura de seus queijos. Depois de estudar, fazer queijos de qualidade e criar seu próprio negócio, teve que garantir que ele pudesse funcionar. Atualmente, embora possa dividir seu tempo entre a produção e a participação em feiras gastronômicas e o relacionamento com lojas especializadas para oferecer queijos que harmonizam bem com vinhos, Martina já pensa em estruturar parcerias com pequenos produtores da região de Parelheiros para criar uma bacia leiteira local. “Aqui é possível desenvolver um ciclo de produção sustentável, onde o soro do queijo pode virar biofertilizante para as pastagens, que alimentam as vacas, garantindo leite de qualidade”, prevê a queijeira. Alguém dúvida que vai dar certo?