
“Samba, futebol e… genômica. A lista de coisas pelas quais o Brasil é conhecido de repente ficou mais longa.” Assim começava o artigo “Fruits of co-operation”, publicado em junho de 2000 pela revista britânica The Economist para anunciar a entrada do Brasil no então seleto grupo de países que detinham a tecnologia da genômica.
Leia também
Agro avança, mas luta contra barreiras à inovação
Pesquisadora brasileira ganha prêmio por inovação contra doenças em citros
Cientistas desenvolvem trigo que estimula a fixação de nitrogênio
O Projeto Genoma, que completa 25 anos neste ano e teve um investimento na época de US$ 15 milhões, foi disruptivo para a ciência brasileira e envolveu o trabalho de 193 pesquisadores de 35 laboratórios paulistas durante dois anos para sequenciar o genoma da bactéria Xylella fastidiosa, identificada como a causadora da Clorose Variegada dos Citros (CVC), doença popularmente conhecida como amarelinho, que estava dizimando os laranjais paulistas. Foi o primeiro genoma de uma bactéria de planta sequenciada no mundo.
O físico Fernando Perez, que era o diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi o idealizador da pesquisa junto com o biólogo molecular Fernando Reinach. O projeto teve a parceria financeira do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), interessado em resolver o problema que abalava a citricultura paulista.
“O mundo todo estava falando de biotecnologia. O objetivo principal da Fapesp era a capacitação dos pesquisadores brasileiros em genômica. Só uns poucos grupos dos EUA, Inglaterra e Europa faziam genômica no mundo. Para o Brasil era uma grande ousadia”, diz.
Outros ineditismos do trabalho concluído em janeiro de 2020 foram a atuação dos pesquisadores em rede, sem a construção de nenhum laboratório, e a publicação do estudo em julho na capa da famosa revista científica americana Nature, com a manchete “Citrus Pathogen Sequenced” (Patógeno de citrus sequenciado) e direito a foto e editorial.
Estudo foi destacado na capa da famosa revista científica americana Nature
Reprodução
Onsa x Tiger
A rede de pesquisadores para o Projeto Genoma recebeu o nome de Organização para Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos, ou, em inglês, Organization for Nucleotides Sequencing and Analysis, que resulta na sigla Onsa. A sigla que tem a sonoridade do felino brasileiro onça era uma referência bem humorada ao “Tiger” (The Institute for Genomic Research), centro de sequenciamento genético dos Estados Unidos, que foi pioneiro no sequenciamento de genomas bacterianos.
Segundo vários pesquisadores entrevistados por Globo Rural, foi um grande desafio montar a infraestrutura para o sequenciamento em rede nas diferentes instituições, mas o Projeto Genoma foi responsável por impulsionar a carreira de todos eles. Ninguém tinha treinamento na metodologia nem equipamentos sequenciadores de DNA ou sabia como usá-los.
Os laboratórios de Reinach, no Instituto de Química da USP, e de Paulo Arruda, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), treinaram pesquisadores ainda inexperientes nas técnicas de biologia molecular e de sequenciamento de genes.
Sequenciar o genoma, segundo Perez, era como ter várias cópias de um mesmo livro, cortar em pedaços e distribuir entre os laboratórios que ficavam encarregados de “ler” cada parte recebida e enviar para a montagem final.
Cada laboratório teve a autonomia de comprar seus equipamentos para dar conta do recado. As máquinas foram compradas e os fragmentos da bactéria foram distribuídos a cada grupo para o sequenciamento. A estimativa era sequenciar 2 milhões de bases da Xylella, mas o número chegou a 2,7 milhões.
“O projeto juntou cientistas mais experientes e novatos. A ideia era essa mesma: formar gente e trabalhar juntos na mesma velocidade”, diz Ana Maria Camargo, atual gerente de pesquisa do Hospital Sírio Libanês, que era aluna de doutorado e trabalhava na época no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, com o britânico Andrew Simpson, que foi escolhido como coordenador da equipe do Xylella por ter por ter alguma experiência em sequenciamento de genes específicos.
Descrito por Ana Maria como fundamental para o sucesso do trabalho por ter sido estratégico e agregador, Simpson conta que teve que comprar uma linha específica de internet, ferramenta que começava a se tornar viável na época, para transmitir os dados do seu laboratório que seriam juntados no laboratório da Unicamp com o dos outros centros de pesquisa para compor o sequenciamento da bactéria.
“O projeto funcionou porque todos entraram com muito compromisso e entusiasmo. A equipe trabalhou dentro do prazo e orçamento.”
Andrew Simpson, José Perez e João Setúbal exibem o mapa da Xylella fastidiosa
Agência Argosfoto/Centro de Memória Fapesp
Sem briga
O britânico também foi fundamental na negociação para a publicação do artigo inédito na capa da Nature. Ele conta que foi consenso o envio do artigo para a revista americana e que a negociação lá foi fácil.
“Escrevemos o trabalho em conjunto e mandamos para a revista. Eles pediram poucos ajustes. A editora me disse que foi um dos raros artigos que entrou sem briga na Nature porque a inovação era muito grande.”
Antes da publicação, Simpson anunciou a conclusão da pesquisa para os cientistas reunidos no 1º Encontro de Genomas Microbianos Relevantes para a Agricultura, promovido pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em San Diego, na Califórnia.
Na abertura do encontro, Peter Johnson, responsável por um dos maiores programas de financiamento de pesquisa do Departamento de Agricultura americano, anunciou à audiência o fechamento do genoma da Xylella assim:
“Tenho uma boa e uma má notícia para contar: a boa, é que foi sequenciado o genoma do primeiro organismo fitopatógeno. A má é que não foi feito aqui nos Estados Unidos.”
Depois do genoma da Xylella, Simpson fez outros dois projetos semelhantes no Instituto Ludwig, um deles o do genoma de câncer em parceria com o maior instituto dos EUA. Baseado nesses sucessos, foi convidado para dirigir o instituto Ludwig em Nova York, o que ele descreve como um dos melhores empregos em ciência do mundo.
Ficou lá por dez anos, mas diz que sempre teve vontade de voltar ao Brasil, o que fez em 2012, quando fundou em Minas Gerais a Orygen, empresa de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos.
Andrew Simpson foi o coordenador da equipe
Agência Argosfoto/Centro de Memória Fapesp
Sem entusiasmo
Marco Antonio Zago, atual presidente da Fapesp e ex-reitor da Universidade de São Paulo, comandava o Laboratório de Hematologia Molecular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto na época. Ele diz que entrou no projeto sem grande entusiasmo porque o objeto da pesquisa estava fora de sua perspectiva de ciência. Como médico, ele estava interessado em genética humana.
Zago conta que foi convencido a se juntar à rede por seu principal colaborador no laboratório na época, Wilson Silva Araújo Júnior, que era aluno de doutorado. Trabalhar em rede era um desafio enorme, porque não havia a cultura da cooperação entre os pesquisadores brasileiros.
Segundo Zago, a personalidade de Simpson, a percepção dos pesquisadores de que acabara a competição entre eles e era o momento de se unir para competir com os grupos de fora para conseguir resultados rápidos foram os componentes básicos do excelente funcionamento do projeto.
“A decisão da Fapesp de investir nesse trabalho inovador em rede foi muito importante porque o que interessava não era apenas sequenciar o genoma de uma bactéria. Essa pesquisa mudou a ciência brasileira. Foi o primeiro passo que nos colocou no mapa da ciência do mundo”, diz Zago.
O presidente da Fapesp afirma ainda que o projeto mudou completamente sua carreira porque qualificou seu laboratório e também o tornou um dos primeiros cientistas brasileiros a trabalhar com sequência de DNA humano no Brasil logo depois com o genoma do câncer.
Sedução dos jovens
O idealizador Perez, atual diretor-presidente da empresa de biotecnologia Receptabio, diz que outros cientistas experientes de várias áreas ficaram com medo de participar do genoma da Xylella pela expectativa de fracasso.
“O establishment científico ficou fora do projeto e fez críticas, mas o projeto seduziu os jovens e, além da genômica, teve o papel importante de implantar a bioinformática no Brasil por meio do trabalho dos pesquisadores da Unicamp João Setúbal e João Meidanis, que na época eram jovens teóricos de bioinformática.”
O pesquisador da Embrapa Agricultura Digital Felipe Rodrigues da Silva, na época com 29 anos, era aluno de doutorado no laboratório de biologia molecular comandado por Arruda, na Unicamp. Ele conta que o Projeto Genoma quebrou hierarquias e gerou uma demanda muito grande por biólogos que falassem “computez” como ele.
Silva conta que foi emprestado para o laboratório de bioinformática da universidade para fazer a anotação do genoma. De biólogo molecular virou bioinformata, especialidade que o levou depois para a Embrapa. Ele diz que cada laboratório teve que aprender a fazer começo, meio e fim do sequenciamento.
“Eram 35 minigenomas acontecendo ao mesmo tempo e a bioinformática tinha a função de montar. Levava 3 semanas para gerar 3 pedacinhos e custava muito caro. Já havia máquinas que faziam o sequenciamento automático, mas eram caras e difíceis de operar.”
O bioinformata foi um dos jovens pesquisadores que acompanharam Simpson em San Diego no anúncio do sequenciamento da Xylella.
“Foi uma grande comoção. Era época das vitórias de Ayrton Senna e havia muito ufanismo. A repercussão foi tão grande que me senti o próprio Senna.”
Luis Eduardo Aranha Camargo, hoje professor titular da Esalq/USP, também estava em San Diego. Engenheiro florestal com mestrado em fitopatologia e doutorado em genética e melhoramento, ele conta que seu laboratório na Esalq foi um dos escolhidos para o sequenciamento.
“Foi um tremendo sucesso. Depois da Xylella, continuamos com outros microrganismos e nos especializamos em sequenciamento de genoma de agro. Mudou o patamar da minha carreira. Na época, o método de sequenciamento era bem artesanal e demandou dois anos de trabalho da rede. Hoje, você consegue sequenciar o genoma de uma bactéria em uma manhã.”
Além do genoma do câncer, o domínio da técnica de sequenciamento, da bioinformática e da pesquisa em genética molecular abriu caminho para estudos de outros genomas do agro, como os da cana-de-açúcar, da Xanthomonas citri, bactéria causadora do cancro cítrico, e do eucalipto.
Pesquisadores do projeto receberam a Medalha do Mérito Científico e Tecnológico
Agência Argosfoto/Centro de Memória Fapesp
Homenagens
O estrondoso sucesso foi reconhecido pela mídia brasileira e internacional. Além das revistas Nature e The Economist, foi notícia no Le Figaro, da Itália, New York Times e Washington Post, dos EUA, e La Nación, da Argentina.
Em fevereiro de 2000, o então governador paulista, Mário Covas “medalhou” todos os pesquisadores do projeto em uma noite de gala na Sala São Paulo com a Medalha do Mérito Científico e Tecnológico. Cada laboratório recebeu o troféu Árvore dos Enigmas. Depois, um grupo dos cientistas foi recebido com honrarias também no Palácio do Planalto pelo então presidente, Fernando Henrique Cardoso.






