
Joel Neri Weiss é um dos milhares de produtores rurais que, entre a década de 1970 e o início dos anos 2000, deixaram o sul do país para tentar fazer a vida nas terras do Cerrado, onde a soja era uma promessa de prosperidade.
E ele é também uma espécie de elo entre os primórdios da cultura no Brasil e o futuro da atividade: Weiss é descendente de uma das quatro famílias que, mais de um século atrás, deram início ao plantio comercial da oleaginosa no território nacional.
Leia também
Cresce a participação do PIB da soja na economia do Brasil
Margens para produtores de soja e milho encolhem diante de custos em alta e produtividade menor
Em 1923, o imigrante alemão Johann Müller, bisavô de Joel, plantou uma das primeiras lavouras de soja do Brasil em uma área que hoje faz parte do município de Cândido Godói, na região noroeste do Rio Grande do Sul.
Nos primeiros anos, o grão servia para fazer rotação de cultivo com o trigo – que era, naquele momento, a principal cultura agrícola do Estado – e para alimentar suínos. Esse uso fez a oleaginosa ganhar a alcunha de “feijão de porco”, apelido que em nada sugere que se trata, nos dias de hoje, do produto mais importante nas exportações do agronegócio brasileiro.
Joel Neri Weiss, de Monte do Carmo (TO), é descendente de um dos primeiros plantadores de soja do Brasil
Arquivo pessoal
No início da década de 1950, Müller mudou-se com sua família para a então fronteira agrícola do oeste do Paraná, onde se instalou no município de Maripá. Inicialmente, a principal atividade da fazenda era o cultivo de café, mas o imigrante levou também os porcos – e, para alimentá-los, a soja.
“Eles achavam que na região não fazia tanto frio, então queriam plantar café, que era mais rentável. Mas aí veio uma geada que matou os cafezais, e eles começaram a investir mais na soja”, relata Joel, que nasceu em Maripá.
Já em 2009, incentivado pelos pais de sua esposa, que haviam se mudado para o Tocantins, Joel comprou a Fazenda Recanto das Perdizes, em Monte do Carmo (TO), a 115 quilômetros de Palmas. Os desafios na nova terra foram grandes.
O regime de chuvas da região, marcado por seca durante metade do ano, dificultava a instalação de duas safras. Problemas com nematoides, parasitas das raízes da soja, também prejudicaram as lavouras.
“Mas a maior dificuldade é o solo. Ele é muito arenoso e tem pouca argila, então, segura pouco a umidade. Tivemos que passar por grandes provações para conseguir continuar na atividade”, afirma o produtor.
Joel superou as provações e aprendeu a plantar no Cerrado, um esforço que incluiu investimentos em cultivares mais resistentes a pragas. A produtividade da soja na Recanto das Perdizes tem crescido. “Quando começamos, colhíamos 40 sacas por hectare. Hoje, em um ano bom, podemos alcançar até 75 sacas”, conta.
Desenvolvimento
A história da soja no Brasil, da qual Joel e família são testemunhas e também protagonistas, tem como uma de suas principais marcas o expressivo aumento de produtividade ao longo do tempo. Essa característica faz da cultura um dos grandes exemplos de sucesso da união entre pesquisa científica, apoio governamental e trabalho duro de empresas e produtores rurais.
Pouco mais de 100 anos atrás, quando a economia brasileira ainda vivia sob o domínio do chamado Ciclo do Café, sequer havia soja no país. Depois de 1930, não houve mais períodos em que um só produto dominou a geração de riqueza no país – como, no caso do agro, foram a partir de 1500, quando os primeiros portugueses desembarcaram no Brasil, os ciclos de pau-brasil, cana-de-açúcar, borracha, cacau e café, sobre os quais a Globo Rural tem contado na série de reportagens especiais que se iniciou na edição de abril deste ano.
Com isso, a oleaginosa não batiza um ciclo econômico. A relevância que ela conquistou nas últimas décadas, no entanto, é incontestável.
Hoje, o grão é majestade: a soja é o principal cultivo nas lavouras, o produto agropecuário que o país mais vende ao exterior e foi a cultura que mais cresceu nos últimos 50 anos. A produção, que foi de 9,9 milhões de toneladas na safra 1974/75, saltou para 171,5 milhões de toneladas em 2024/25. Desde 2019/20, o Brasil é o maior produtor mundial, à frente dos Estados Unidos, que colheu 118,8 milhões de toneladas na safra passada.
Sozinha, a cadeia do grão gerou, em 2024, um Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 650 bilhões, segundo cálculos do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) e da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). O montante corresponde a 5,5% de todo o PIB brasileiro.
Assim como outros produtos agrícolas, a cadeia da soja tem benefícios fiscais, com isenção de PIS e Cofins, impostos federais, além do ICMS, estadual, na exportação. “Com a desoneração, o objetivo dos governos federal e estaduais é incentivar a produção de alimentos, uma prática que existe no mundo todo”, explica Viviane Morales, diretora administrativa do escritório Lastro, especializado em tributação no agronegócio.
Dados da Receita Federal mostram que as desonerações da soja totalizam R$ 6,3 bilhões, e as principais beneficiárias são as tradings. No ano passado, as exportações da oleaginosa renderam US$ 42,9 bilhões ao Brasil e representaram 12,7% da balança comercial, de acordo com as estatísticas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Histórico
Originária do norte da China, a soja começou a servir como alimento há cerca de 5.000 anos, no leste asiático. No Ocidente, o cultivo comercial surgiu nos primeiros anos do século XX nos Estados Unidos, para uso na alimentação animal e produção de óleo.
Já no Brasil, antes de se transformar em lavoura no Rio Grande do Sul, o grão foi objeto de um estudo pioneiro em 1882, na Escola Agrícola São Bento das Lages, em Francisco do Conde, na Bahia. No entanto, o experimento fracassou, porque o material genético, que chegou pelas mãos de americanos, não se adaptou às condições locais.
Há também relatos de que sementes teriam entrado no país com os primeiros imigrantes japoneses que chegaram ao território brasileiro, em 1908.
Johann Müller e as outras três famílias responsáveis pelo início do cultivo comercial de soja no país receberam sementes do grão do missionário luterano Albert Lehenbauer. Nascido nos Estados Unidos, o pastor chegou ao Brasil em 1915 para evangelizar famílias de origem russo-alemã que viviam na região de Santa Rosa (RS).
Pastor Albert Lehenbauer, pioneiro da soja no Brasil
Arquivo Família Triebe
Em 1922, Lehenbauer voltou aos Estados Unidos para se tratar de problemas de saúde. Nesse período, visitou uma de suas irmãs, que plantava soja no Estado do Missouri. O pastor encantou-se com os benefícios que o grão gerava para o solo e com o potencial de uso da cultura na alimentação animal. Com isso, em 1923, quando retornou para Santa Rosa, o missionário levou na bagagem uma garrafa com sementes da oleaginosa.
Um pouco dos grãos ele semeou em sua horta, um local que se tornou, em 2024, o monumento do Marco Zero da Soja no Brasil. O restante o pastor distribuiu entre quatro famílias locais – Brachmann, Schwartz, Bessel e Müller –, em troca da promessa de que devolveriam parte da colheita para que a igreja pudesse repassar as sementes a outros colonos.
Em setembro, a Globo Rural visitou o local, que continua a ser de cultivo do grão. Sili Reiter Weiss, de 78 anos, é hoje a dona da área de 12,5 hectares que a família comprou há 60 anos e que, muito antes disso, havia pertencido a Johann Müller. “Nós tínhamos outro pedaço de terra, onde criávamos porcos, mas lá não tinha muita água. Compramos aqui porque a água era mais abundante, mas não sabíamos dessa história do plantio da soja, que só nos contaram muito depois”, lembra a produtora.
Sili Reiter Weiss, de 78 anos, vive em uma das primeiras áreas de cultivo de soja no Brasil
Fredy Vieira
No município viinho de Senador Salgado Filho (RS) vive Hildegart Schwarz Schulz, 72 anos, neta de Bruno Schwarz, outro dos quatro primeiros produtores que receberam sementes de soja do pastor Lehenbauer. “Meu avô falava que, no começo, não produziram muito. Mas depois acertaram a época de plantio e a soja começou a render mais”, lembra.
Além de alimentar porcos, os grãos torrados eram usados até para substituir o café. “Era muito caro o café na época aqui no Sul, então minha vó chegou a usar soja para substituir”, recorda Hildegart.
Hildegart Schwarz Schulz com a foto de seu avô, Bruno Schwarz, um dos pioneiros da soja
Fredy Vieira
O produtor Nelson Eberhardt, 78 anos, de Ubiretama (RS), lembra da transformação que ocorreu no plantio da soja. “No começo era plantada apenas junto das fileiras de milho. Só depois dos anos 1970, quando o preço começou a subir e os agricultores puderam investir em mecanização, que se fez lavoura exclusiva de soja”, lembra.
Na primeira lavoura mecanizada que plantou em propriedade de 20 hectares, que comprou no início dos anos 1970, Eberhardt plantou apenas duas sacas de soja. “Juntou umas 80 pessoas para ver como uma máquina sozinha conseguia ceifar, trilhar e ensacar o grão”, recorda.
Embora tenha vivido muito tempo com a renda do grão, ele parou de plantar há 10 anos. O motivo é baixa rentabilidade da produção para uma pequena propriedade. “Aqui na região, para ter renda com soja, é preciso possuir no mínimo 50 hectares, porque o custo de produção é muito alto e a receita é pequena”, destaca Eberhardt, que hoje dedica-se à produção de leite.
Nelson Eberhardt deixou de plantar soja devido à perda de rentabilidade em áreas pequenas
Fredy Vieira
“Império da soja”
Longe do noroeste gaúcho, no coração de Mato Grosso, a família Maggi Scheffer tirou do grão um império. Há 43 anos, os irmãos Eraí, Elusmar e Fernando Maggi Scheffer, naturais de Torres (RS), venderam um sítio de 65 hectares em São Miguel do Iguaçu (PR) para tentar a sorte em Rondonópolis (MT).
A família arrendou a Fazenda Bom Futuro, de 2.000 hectares, em 1988, e pagava o aluguel com a produção de soja. Em 1993, Eraí comprou a propriedade. Hoje, o Grupo Bom Futuro emprega 7.000 pessoas e fatura, estima-se, R$ 6 bilhões por ano. A empresa cultiva 714.000 hectares, sendo 310.000 hectares de soja, com produtividade média de 68 sacas por hectare e colheita de 1,3 milhão de toneladas por ano.
Eraí Maggi, do Grupo Bom Futuro: “O Brasil tem que mostrar que produz de forma sustentável
Fernando Martin
“Em um passado distante, tínhamos uma produção de 42 sacas por hectare. Chegamos a 68,7 sacas, mas temos talhões que já entregaram até 105 sacas por hectare. Quero vislumbrar um horizonte de 80 sacas por hectare a médio prazo, considerando nossa área total, mas há espaço para crescer mais”, diz Eraí.
O Bom Futuro tem a certificação Round Table on Responsible Soy (RTRS), de produção responsável, o que atesta que seu plantio ocorre fora de áreas desmatadas. No cultivo, a empresa utiliza técnicas e sistemas como plantio direto, agricultura de precisão e bioinsumos.
Considerado o atual “rei da soja” no Brasil, Eraí Maggi diz que, por ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o país tem que mostrar que produz de forma sustentável. “Temos os nossos problemas, como queimadas e desmatamento ilegal. Esses pontos negativos são exceções, que não representam o nosso negócio”, afirma.
Avanços da ciência
Os ganhos de produtividade, uma das marcas da expansão da cultura no país, não ocorreriam sem os avanços da ciência. A estatal de pesquisa agropecuária Embrapa nasceu em 1974 tendo como uma de suas diretrizes tornar possível o cultivo de grãos em larga escala na região central do país.
Em 50 anos de existência, a Embrapa Soja desenvolveu cerca de 440 cultivares de soja. Muitos dos avanços das técnicas de cultivo, que têm melhorado a sustentabilidade e o rendimento de produtores como Eraí Maggi, deve-se ao trabalho de técnicos e cientistas da estatal e de outros centros de excelência.
Quando os irmãos Ricardo e Rogério Arioli saíram de Erechim (RS) para plantar soja em Campo Novo do Parecis (MT), na década de 1980, a produtividade da cultura em sua nova terra era de 35 sacas por hectare. “A fazenda era bruta, e a estrada era complicada. Não tinha eletricidade nem médico na cidade naquela época”, conta Ricardo.
“Hoje colhemos 90 sacas por hectare em alguns talhões. E a produtividade cresce todo ano”, completa ele, dono da Agropecuária Novocampo.
A fazenda de Arioli também tem certificação da RTRS. A soja ocupa 2.000 dos 2.850 hectares da propriedade, que também produz milho, faz integração com pecuária de corte e aproveita o esterco do gado como adubo. “E estamos começando a utilizar insumos biológicos”, conta.
Com ciência e boas práticas é possível contrabalançar fatores que limitam o bom desempenho no campo. A Bahia, por exemplo, onde a soja começou como um experimento frustrado, deverá encerrar a safra 2025/26 com a segunda maior produtividade média do país, de acordo com estimativas da Conab. O rendimento, calcula a estatal, será de 65,9 sacas por hectare. Apenas Goiás deverá ter média superior na temporada.
Produção de soja no país dividida em rgiões
Estúdio de Criação/Conab
Luiz Pradella conheceu a soja ainda criança ajudando o pai na lavoura da família, no Paraná, no início dos anos 1970. Atendendo a um convite para empreender no oeste da Bahia, ele começou a produção em sociedade com o irmão em Formosa do Rio Preto (BA), em 2000. “Estamos aqui há 25 anos. No início, a comunicação era muito deficitária, não tinha energia elétrica, as estradas eram ruins, mas, com o tempo, fomos vencendo essas dificuldades”, conta o agricultor.
Técnico agrícola de formação, Pradella acredita que o oeste da Bahia ainda é o polo em que é mais difícil produzir soja no Brasil porque o solo da região da região oeste do estado, que concentra as lavouras do grão, é arenoso – alguns locais são de encontro entre o Cerrado e o semiárido, com seus veranicos característicos.
Luiz Pradella, que produz soja em Formosa do Rio Preto (BA) desde o ano 2000
Divulgação/Henri Kenzo Taniguti
Por outro lado, a região tem altitude e amplitude térmica favoráveis aos cultivos de soja, milho, algodão e até de cacau. “Por ser um solo difícil, a pesquisa criou soluções e investimos em melhoramento de solo, armazenamento de água, rotação de culturas. O que era o maior problema virou a maior solução, e o resultado veio em forma de produtividade”, constata.
Pesquisa e produção
As técnicas atuais, que têm ajudado a aumentar a produtividade da cultura, não seriam possíveis sem um passo anterior, e decisivo, na história da cultura no Brasil: a “tropicalização”, uma série de iniciativas que tornaram bem-sucedido o cultivo entre o Trópico de Capricórnio e a Linha do Equador.
Esse processo começou na década de 1970, e seu principal expoente é o engenheiro agrônomo Romeu Kiihl.
Romeu Kiihl atuou no melhoramento vegetal e trabalho na criação de 150 variedades da oleaginosa adaptadas ao Cerrado
Sérgio Ranalli
O pesquisador aplicou no Brasil conhecimentos de melhoramento vegetal que obteve em cursos de mestrado e doutorado na Universidade Estadual do Mississippi, nos Estados Unidos. Nos anos 1970, trabalhando no Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e depois no Instituto Agronômico do Estado do Paraná (Iapar) e na Embrapa Soja, Kiihl desenvolveu as primeiras variedades de soja adaptadas ao clima tropical, principalmente ao Cerrado .
Nas três instituições, o agrônomo, conhecido como “pai da soja tropical”, contribuiu com a criação de 150 variedades de soja adaptadas ao Cerrado. Hoje, ele segue na ativa, atuando como diretor científico da Tropical Melhoramento & Genética (TMG Sementes), em Londrina (PR).
“O sucesso da soja no Brasil central é a combinação de três pilares: correção da acidez e da fertilidade do solo, genética, que tornou possível fazer colheita antecipada do grão para cultivo da segunda safra, e o agricultor brasileiro. É o pessoal que saiu do Sul e foi para regiões sem condição alguma, morando em lonas amarradas no caminhão, até fazer dar certo a produção no Centro-Oeste”, ressalta o experiente agrônomo.
Para ele, as pesquisas devem se voltar também ao desenvolvimento de sementes com alta produtividade e com níveis mais altos de proteína ou óleo. “Outra tendência são as variedades com resistência a doenças provocadas por nematoides”, observa.
Em 50 safras, a produtividade média da soja no Brasil dobrou, passando de 1.748 quilos para 3.621 quilos por hectare. E há espaço para muito mais, acredita Alexandre Nepomuceno, chefe-geral da Embrapa Soja, para quem o potencial é de 12.000 quilos por hectare.
“Ainda não se chegou a esse nível. Mas, com ciência, inovação, manejo de solo e das plantas é possível multiplicar a produtividade com muito mais rapidez do que no passado”, avalia Nepomuceno.
Ele observa que o sequenciamento genético da soja demorou 15 anos para ser concluído e custou mais de US$ 100 milhões. Hoje, no entanto, é possível sequenciar o DNA em quatro horas, por US$ 500.
“Só na Embrapa temos 65.000 tipos de soja. A partir do momento em que consigo saber o que cada gene faz, posso usar essa informação para fazer o melhoramento, por transgenia ou técnicas mais recentes, como a edição gênica”, comenta.
O avanço das tecnologias também teve que superar dificuldades legais em alguns momentos. Somente em 1997 foi aprovada a Lei de Proteção de Cultivares , que protege a propriedade intelectual das sementes desenvolvidas. No caso das plantas transgênicas, a Lei de Biossegurança, que estabelece normas para o uso de organismos geneticamente modificados, só foi estabelecida em 2025.
Antes disso, muitos produtores já cultivavam, mesmo de forma ilegal, sementes modificadas que traziam vantagens para suas lavouras. A família de Décio Geraldo Schleger, de Santa Rosa (RS) foi uma das primeiras a plantar soja transgênica no Brasil, no final dos anos 1990.
“Começamos a plantar por causa das ervas invasoras, que representava um problema bem crítico na época, a soja estava perdendo produtividade pela competição”, lembra.
Segundo o produtor, as primeiras sementes foram espalhadas pelos próprios agricultores do noroeste gaúcho. “Passaram de mão em mão, entre os vizinhos. Era uma alegria para o povo, porque permitia o controle fácil do inço.”. No entanto, a tecnologia também era motivo de temor para muitos agricultores. As sementes não tinham plantio liberado no Brasil, e muitas chegavam como “contrabando” da Argentina.
“O povo não falava que plantava, porque tinha as notícias que a polícia vasculhava os lugares onde se semeava transgênicos”, destaca Décio, que atualmente planta 120 hectares junto com o filho, Gustavo Eduardo Schleger.
Décio Geraldo Schleger e seu filho Gustavo Eduardo Schleger
Fredy Vieira
Produtividade
Aumentar a produtividade exige trabalho e também investimento, afirma Daniel Glat, presidente do Comitê Estratégico Soja Brasil (CESB), entidade que é referência nacional em conhecimento e inovação para a sojicultora. “Todos os campeões de produtividade destacam que é necessário investir em genética e na qualidade de operações, como plantio, pulverização e distribuição de adubo. Nesses pontos, a agricultura de precisão será uma aliada importante”, avalia.
Outro diferencial importante para melhorar o rendimento, afirma Glat, é o solo. “É preciso cuidar da qualidade física, química e biológica dos solos”, resume.
O aumento da produção de soja no mundo deverá acompanhar o crescimento da renda da população global, avalia Guilherme Bastos, coordenador do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGV Agro).
Segundo ele, em países da Ásia e da África, tem crescido o consumo de carnes à medida que a renda per capita aumenta, o que eleva a demanda por farelo de soja para ração animal. O Brasil, acredita Bastos, é hoje o único país no mundo capaz de aumentar a produtividade e a área de plantio do grão, e, assim, deve manter a liderança nesse cultivo.
Initial plugin text
Para ele, o aumento da produção ocorrerá sobretudo na área do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e na região Norte do país. “Ainda tem uma área de cultivo, de 53 milhões a 55 milhões de hectares, a ser explorada”, comenta.
Já os esforços globais para a transição energética, com a qual se pretende reduzir os impactos das mudanças climáticas, elevam a demanda por biocombustíveis. Nesse segmento, a soja é a commodity que os fabricantes mais utilizam para obter o óleo que é a base para a produção de biodiesel, por exemplo.
“Acho difícil ter uma cadeia tão integrada, conectada e capaz de suprir a demanda por biocombustível como a soja. O óleo de palma na Ásia, a macaúba no Brasil são soluções com impacto regional”, afirma Bastos.
Por muitas décadas, o uso da soja destinava-se principalmente à obtenção de farelo para produção de ração animal. O óleo era tratado como subproduto, mas isso mudou nos últimos anos. “Hoje, o que mais estimula o esmagamento é o óleo para o mercado de energia. Várias processadoras investem para ampliar o processamento”, diz André Nassar, presidente-executivo da Abiove.
No mercado brasileiro, a demanda tende a crescer ainda mais com a lei do Combustível do Futuro, que prevê aumento da mistura de biodiesel no diesel em 1% a cada ano, saindo dos 15% em que está hoje para 20% até 2030. Nassar calcula que, para cada 1% de biodiesel que se adiciona ao diesel, é preciso esmagar 3 milhões de toneladas de soja a mais por ano.
A procura também pode crescer com o uso do óleo para a produção de combustível de aviação sustentável (SAF) e para combustível para termoelétricas, entre outros usos.
No caso do farelo, o desafio é abrir mercados internacionais e reduzir o custo de produção para melhorar a rentabilidade da commodity. Na visão de Bastos, da FGV Agro, o que mais limita a expansão da estrutura de esmagamento de soja no país é justamente a demanda pelo farelo.
Atualmente, as indústrias no Brasil processam 33% da soja que o país colhe. “Outra limitação é que a maioria das indústrias está no interior do país, o que encarece os preços do farelo e do óleo até esses produtos chegarem aos portos”, complementa.
Outro desafio são as instabilidades geopolíticas, como a relação entre a China, atualmente a maior importadora de soja do mundo, e os Estados Unidos, que concorrem com o Brasil na produção da oleaginosa e são relevantes na formação de preços na Bolsa de Chicago.
Para dar suporte ao crescimento da cadeia nacional, Alexandre Nepomuceno, da Embrapa Soja, defende que a indústria aumente o uso da commodity na química fina. “Nos Estados Unidos, estão usando óleo de soja para produção de asfalto, usando na borracha para produzir sandália, para fabricar pneu. Isso agrega valor à soja e gera mais empregos. O Brasil já agrega valor com a produção de carne, mas pode fazer mais”, observa.
Mudanças climáticas e sustentabilidade
Um problema incontornável, na cadeia da soja e em toda a atividade agropecuária, é o das mudanças climáticas, que podem atrapalhar os planos de crescimento da produtividade e do mercado da soja. “Defesa e ataque não andam juntos, temos que ser honestos. Quem está em uma área climaticamente estressada não poderá adotar as mesmas estratégias de quem planta em uma primavera irrigada. A depender da região, terá que haver um manejo para alta produtividade ou um manejo para se proteger das intempéries”, afirma Daniel Glat, do CESB.
Os efeitos das mudanças climáticas estão no dia a dia dos produtores, e não é de hoje. O pesquisador Eduardo Assad, professor da FGV, lembra que a soja ganhou espaço no Rio Grande do Sul, inicialmente, porque o clima no Estado é similar ao de áreas produtoras nos Estados Unidos.
Em seguida, com a tropicalização e a expansão no Centro-Oeste, a condição climática do Brasil central era bem definida, com seis meses secos e seis meses chuvosos. “Hoje, estamos vendo uma redução no período chuvoso e um aumento na temperatura muito grande”, comenta.
Ele menciona que, entre o ano 2000 e meados de 2023, a cadeia da soja perdeu, só na região Sul, cerca de R$ 300 bilhões por problemas com o clima. O dado não inclui as perdas que os produtores tiveram com as enchentes históricas do ano passado, que prejudicaram o solo, derrubaram a produtividade e tiraram muitos agricultores da atividade. “O Sul é a região mais vulnerável. Se não mudarem o sistema de produção, vão continuar muito vulneráveis”, enfatiza Assad.
Segundo o pesquisador, as ondas de calor no Brasil têm feito as temperaturas subirem até 4ºC, principalmente nos períodos de floração e enchimento dos grãos da soja. Essa condição pode causar grandes perdas de rendimento nas lavouras, de até 1.000 quilos por hectare.
Assim, na avaliação do especialista, é urgente que os produtores mudem processos de produção, passando a adotar sistemas integrados.
“Integração entre lavoura e pecuária, lavoura-pecuária-floresta. Precisamos trabalhar para manter a umidade do solo, porque, se a gente não conseguir fazer isso, vamos ter perdas sucessivas de produtividade”, alerta.
Um problema que joga contra os esforços sustentáveis é o desmatamento. “Cerca de 74% da redução da chuva que está ocorrendo na região Norte e no Centro-Oeste do Brasil é consequência do desmatamento”, afirma Assad.
Ao mesmo tempo, o pesquisador ressalta que existem muitos produtores que já chegam ao Matopiba, por exemplo, região que é considerada a atual “nova fronteira agrícola” do país, com uma série de conhecimentos que obtiveram em outras regiões.
Esses produtores também têm um “olhar mais tecnificado”, atento a práticas que ajudam a mitigar os efeitos de problemas climáticos e a manter a umidade do solo. “Há 35 anos falo isso: aqueles que produzem bem são prejudicados pelos que produzem mais ou menos e transferem uma imagem negativa de todos os produtores de soja para o mundo”, completa o especialista.
O produtor Laercio Dalla Vecchia recebe 2.000 pessoas por ano para mostrar práticas sustentáveis
Arquivo pessoal
O produtor Laercio Dalla Vecchia é do time dos que estão não só preocupados com o futuro do planeta, mas também fazendo algo a respeito no cultivo de soja. Com 400 hectares de área própria e 50 hectares de arrendamento no município de Mangueirinha (PR), o agricultor recebe 2.000 pessoas por ano em sua propriedade para apresentar e disseminar as práticas sustentáveis que ele aplica no campo.
“Além do plantio direto e rotação de culturas, o principal é o uso de plantas de serviço. São cultivos de aveia, centeio, ervilha, girassol e outras que trabalham para melhorar o ambiente. Elas criam condições propícias para o desenvolvimento de microrganismos do bem que diminuem problemas com ervas daninhas e com nematoides, por exemplo”, detalha.
Essas plantas também “alimentam o solo”, e, dessa forma, as condições de oxigênio ficam mais saudáveis para as lavouras de grãos. A área de Laercio tem 30% de soja. Milho e feijão, além dos cultivos de serviço, cobrem o restante.
Como prova de que é possível combinar sustentabilidade com bons rendimentos, em 2020, Laercio venceu o 12º Desafio Nacional de Produtividade do CESB, alcançando 118,8 sacas de soja por hectare em um talhão. Na fazenda inteira, seu recorde foi o da safra 2024/25, quando ele colheu 98 sacas por hectare.
“A expectativa para a nova safra é ótima. Fiz o meu dever de casa”. Mas Dalla Vecchia não seria exceção? “As boas práticas agrícolas podem, sim, resultar em aumento da produtividade em âmbito nacional. Nós, produtores, estamos aqui só de passagem, e as futuras gerações dependem do nosso cuidado com o solo”, ensina.