Em uma época em que mulheres mal tinham espaço na ciência, Johanna Liesbeth Kubelka Döbereiner marcou seu nome na história. Nascida na antiga Tchecoslováquia, a cientista chegou ao Brasil em 1950 e, ao longo da sua vida no país, revolucionou a agricultura mundial a partir de um laboratório simples, provando que bactérias microscópicas podiam fazer frente aos gigantes da indústria química.
Embora seu nome fosse reverenciado nos círculos acadêmicos e científicos internacionais, ela permaneceu praticamente anônima para o grande público brasileiro.
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Mente brilhante, alma modesta
Nascida em 1924 em Aussig, na então Tchecoslováquia (hoje Ústí nad Labem, na República Tcheca), Johanna viu a vida ser transformada com a Segunda Guerra Mundial. Perdeu a mãe em um campo de concentração, foi expulsa de sua terra natal e, refugiada na Alemanha, começou a trabalhar como operária rural, plantando batatas e ordenhando vacas para sobreviver e sustentar os avós. Nessa adversidade, começou a germinar a cientista apaixonada pela agricultura.
Desafiando os padrões de gênero da época, ingressou na Universidade de Munique para estudar Agronomia – um campo majoritariamente masculino – enquanto trabalhava em fazendas experimentais. Ali conheceu seu futuro marido, Jürgen Döbereiner, e em 1950, o casal desembarcou no Brasil com o diploma na mão e o desejo de recomeçar.
Johanna Döbereiner e Jürgen Döbereiner
Divulgação/Embrapa
A chegada ao Brasil coincidiu com a reconstrução científica do país no pós-guerra. Johanna foi imediatamente contratada pelo Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola, que mais tarde daria origem à Embrapa Agrobiologia.
Johanna dizia que aprendeu de verdade a fazer ciência em terras brasileiras. Em 1957 já era pesquisadora assistente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, em 1968, pesquisadora conferencista. Entre 1963 e 1969, quando poucos cientistas acreditavam que a fixação biológica de nitrogênio poderia competir com fertilizantes minerais, Johanna deu início a um programa de pesquisas sobre os aspectos limitantes da técnica em leguminosas tropicais.
“Me senti como estrangeira só nos primeiros anos, porque não falava a língua direito, não entendia”, disse ao jornal O Globo, em 1979. “A gente veio como imigrante, sabendo que escolheu o Brasil como pátria e não para mudar nada. Eu sabia que estava sem pátria e vim aqui procurar uma nova pátria. Então vim com mentalidade positiva”, completou.
Diante disso, destacou-se, conquistou o respeito de seus pares e, aos poucos, tornou-se mundialmente reconhecida pelo seu trabalho. “Não tem nada de mais na vida de um cientista. É rotina como outra qualquer. Só que meu escritório é um laboratório. Sou uma camponesa no laboratório”, disse, certa vez, com a simplicidade que a acompanhou até o fim da vida.
Foi no campo da microbiologia do solo que Johanna fez sua maior contribuição. Em uma era em que os fertilizantes químicos eram tratados como a solução definitiva para a produtividade agrícola, ela defendia outra via: a fixação biológica do nitrogênio (FBN), feita por bactérias associadas às raízes de leguminosas.
Estudando essas bactérias, Johanna provou que era possível cultivar soja em solos tropicais sem necessidade de adubos nitrogenados.
O impacto foi gigantesco: a economia anual com fertilizantes ultrapassa hoje US$ 2 bilhões. A técnica evita a poluição do solo e dos rios, tornando a produção mais sustentável e menos dependente de insumos importados.
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Mesmo diante de tanto reconhecimento, Johanna nunca deixou que os títulos e homenagens a afastasse do laboratório. “Não faço nada sozinha. Tudo é fruto de muita troca entre nossa equipe”, dizia. Até os últimos dias de vida, já diagnosticada com problemas neurológicos, continuava acompanhando pesquisas e orientando jovens cientistas na Embrapa.
Liderou equipes, orientou dezenas de pesquisadores, descreveu mais de nove novas espécies de bactérias diazotróficas (que fixam nitrogênio) e contribuiu para o desenvolvimento de inoculantes para soja, feijão, milho e cana-de-açúcar. Foi também pioneira na identificação da associação endofítica de bactérias – quando os microrganismos vivem dentro da planta – uma descoberta que ecoa até hoje na ciência agronômica.
Apesar disso, manteve uma vida simples. Rejeitou convites para trabalhar em outros países e declarou, em entrevista ao jornal O Globo, em 1979: “Não troco o Brasil por nenhum outro. É o país que escolhi, estou muito bem aqui e não o deixaria nem para ter vantagens em outros lugares”.
Johanna Döbereiner faleceu em outubro de 2000, aos 75 anos. Deixou um legado científico imensurável, um modelo de sustentabilidade que mudou a agricultura brasileira e abriu portas para mulheres em um setor ainda predominantemente masculino.
Indicada ao Prêmio Nobel de Química, membro de academias científicas no Brasil, Vaticano e ONU, sua contribuição ultrapassou fronteiras. Ela não apenas revolucionou a forma como o Brasil produz alimentos, mas também mostrou que a ciência aplicada pode, sim, transformar um país.
Temos que trocar informações e conhecimentos. A ciência precisa disso.