
Nascido em Eindhoven, na Holanda, em 24 de outubro de 1949, Hans Peeten foi o segundo filho entre nove irmãos. Criado em uma propriedade rural de 16 hectares, na adolescência ele ajudava seus tios no trabalho em uma área onde plantavam trigo, centeio, beterraba, forrageiras para o gado e um pouco de batata.
Leia também:
Globo Rural de setembro destaca o café e os campeões do Prêmio Fazenda Sustentável
Aproximar pessoas para espalhar bons exemplos
Globo Rural premia as fazendas mais sustentáveis do Brasil em 2025
Quando chegou o momento de cursar a faculdade, ele escolheu agronomia, na cidade de Wageningen, onde se formaria em 1975. Mas, antes disso, o Brasil entrou em sua vida. Ele chegou ao país em 1974 para um estágio de nove meses e encontrou um cenário, literalmente, de terra arrasada. O que ele viu, sobretudo no Paraná, foi a erosão devastando os solos em decorrência do sistema de arar e gradear as terras antes de cada plantio.
Ainda como estudante, Peeten começou a disseminar o sistema de plantio direto, que, em lugar do revolvimento do solo, propõe o plantio sobre a palhada da cultura anterior, deixando a terra sempre protegida, o que ajuda a evitar a erosão.
Depois de formado, o holandês recebeu um convite para retornar ao Brasil em 1976 e continuar o trabalho na região dos Campos Gerais do Paraná.
Ao lado de outros visionários, como os agricultores Herbert Bartz, Franke Dijkstra e Manoel Henrique Pereira, o Nonô Pereira, fez um trabalho de pesquisa e também de convencimento de outros agricultores para que abandonassem os arados. Atualmente, segundo a Federação Brasileira do Sistema Plantio Direto (FEBRAPDP), adota-se o sistema em mais de 33 milhões de hectares no Brasil.
Hans Peeten esteve no país no início de setembro para proferir palestras a agricultores. Um desses encontros ocorreu no IrrigaShow, evento promovido pela Associação do Sudoeste Paulista de Irrigantes e Plantio na Palha (Aspipp), no distrito de Campos de Holambra, em Paranapanema (SP), onde concedeu entrevista à Globo Rural.
Globo Rural: Por que o senhor veio ao Brasil na década de 1970?
Hans Peeten: Eu era um jovem estudante de agronomia. Por ser de uma família grande, precisava sempre buscar algum dinheiro para bancar os estudos. Por isso, eu colaborava em trabalhos de pesquisas para o desenvolvimento da agricultura holandesa. Nas férias, eu assumia diversos ensaios em solos arenosos. Em 1971, começamos a adaptar máquinas plantadeiras de quatro linhas para fazer plantio direto. Em outubro de 1973, um representante da firma de máquinas Howard, da Inglaterra, ao ver esse trabalho, me disse: “Você tem que fazer isso lá no Brasil”. Ele perguntou se eu sabia falar português. Respondi que sim, porque, em férias anteriores, eu tinha passado seis semanas em Portugal, em um programa de estágio, onde aprendi algumas palavras. Em fevereiro de 1974, desembarquei no Brasil pela primeira vez.
Globo Rural: Qual foi o cenário da agricultura que o senhor encontrou?
Peeten: Uma agricultura completamente louca, de arar e gradear, com curvas de níveis que estouravam quando vinham as chuvas mais fortes.
Globo Rural: Quanto tempo durou a sua primeira visita e como foi o trabalho?
Peeten: Foram nove meses, até outubro de 1974. Quando cheguei, fui do aeroporto de Guarulhos até a Fazenda Sacramento, em Avaré (SP). Começamos a trabalhar com uma Rotacaster, que era uma adaptação de uma enxada rotativa para fazer plantio direto. Regulamos a máquina pela primeira vez na propriedade do Theodorus Daamen, em Campos de Holambra (SP). Depois, de caminhonete, fui ao norte do Paraná, para Rolândia, onde conheci Herbert Bartz, visionário que já plantava sem arar e gradear desde outubro de 1972. Na sequência, fui descendo em direção ao sul do estado e do Brasil para conhecer a realidade da agricultura do país e de outros imigrantes holandeses, como o pessoal da colônia de Carambeí (PR), onde fiz demonstrações da Rotacaster. Alguns produtores, como Franke Dijkstra, acreditaram que poderia ser uma solução.
“Hoje, muitos produtores brasileiros podem mostrar a sua terra como um cartão de visitas”, afirma Peeten
Ezequias Pedroso/ASPIPP
Globo Rural: Qual foi o seu sentimento ao concluir aquele estágio?
Peeten: Do ponto de vista de aprendizado, foi fantástico. Mas vi que a erosão estava acabando com a terra, especialmente nos solos rasos da região dos Campos Gerais do Paraná. Para mim, ali não haveria futuro para a agricultura. Tendia a se tornar um deserto.
Globo Rural: Em 1976, o senhor retornou ao Brasil. Por quê?
Peeten: Eu já estava formado, e, de repente, aparece o Franke Dijkstra na Holanda, dizendo que as comissões agrícolas de cooperativas tinham um convite para eu trabalhar no Brasil. Eu já estava casado. Aceitei o convite e me mudei com a minha esposa, Toos.
Globo Rural: Qual a missão que propuseram?
Peeten: Revitalizar a agricultura dos Campos Gerais do Paraná, visando, principalmente, melhorar o solo, que estava se degradando. A produção não evoluía ou até decaía. Alguns produtores me diziam: “Não tem solução, vou ter que vender a área e procurar uma nova”. E eu respondia com um questionamento: “Uma área nova para estragar de novo?” Um produtor com o qual tive esse diálogo me levou em um avião, depois de um dia de chuva, para ver o cenário de erosão. Foi um choque. Visto de cima, o problema é ainda pior. Ele estava desesperado. “O banco vai me tomar tudo”, dizia. Parar de arar e gradear era a única saída. Ele fez isso e está em sua fazenda até hoje, produzindo muito bem.
Globo Rural: Como o senhor fez para convencer o pessoal a abandonar o arado, milenar, e plantar sobre a palha?
Peeten: Foi muito difícil. Produtores e pesquisadores me chamavam de louco. “Não é possível o que você quer fazer”, exaltavam-se. Mas não adiantava brigar. Tinha que mostrar. Um ou outro aceitava assistir a uma demonstração. A desconfiança era tanta que, em 1977, formamos um grupo misto, de 20 pessoas, com produtores, agrônomos e técnicos dos institutos de pesquisas, para ficar três semanas nos Estados Unidos. Montei um cronograma com visitas a agricultores e a ensaios de herbicidas, máquinas e implementos. Fomos a Ohio, Mississippi, Missouri, Kansas, Oregon. Em muitos desses locais, já plantavam sobre a palha desde a década de 1960. Vimos demonstrações interessantes. Todos voltaram ao Brasil convictos de que era uma solução, mas cientes de que não tinha nada pronto: não havia máquinas, pulverizadores, defensivos, só um ou outro. Foi um início de adaptações, testes, comparações e, com isso, vinham as críticas.
Globo Rural: O engajamento dos agricultores foi importante?
Peeten: Aqueles que foram aos Estados Unidos formaram um grupo de pessoas com quem eu poderia ao menos conversar e tentar novas coisas em suas fazendas. Começamos os ensaios, com muitas falhas, é claro. Em 1979, Franke Dijkstra e Nonô Pereira também foram aos Estados Unidos e visitaram o professor Shirley Phillips, da Universidade de Kentucky, e o agricultor pioneiro Harry Young Jr. Eles voltaram certos de que o plantio direto era o caminho e que precisavam convencer mais gente. Foi quando criaram o “Clube da Minhoca”, que daria origem à Federação Brasileira do Sistema Plantio Direto. A gente não tinha infraestrutura nem nada formal, mas sobrava vontade e começamos um trabalho de comunicação.
Globo Rural: Por que a minhoca foi escolhida como símbolo?
Peeten: Palha e minhoca andam juntas. Em uma agricultura como a brasileira daquela época, com histórico de 20 anos de defensivos incorporados ao solo e muita erosão, eu não esperava encontrar minhocas logo no começo do plantio direto, mas elas surgiram – e não só em um lugar, mas em muitos, provando que a natureza estava do nosso lado, que a vida voltaria ao solo.
Globo Rural: Elas ajudaram a convencer outros agricultores?
Peeten: Era uma época sem computador portátil, telefone, internet. Pegamos um carrossel de fotos e um projetor de slides e saímos pelo Paraná inteiro, pelo Rio Grande do Sul, por onde tivesse alguém disposto a nos ouvir e a trocar informações. Isso tinha que ser feito nos fins de semana, porque de segunda a sexta nós tínhamos nossos afazeres. Naquele tempo, postos de combustíveis de beira de estrada fechavam aos domingos. Certa vez, para uma viagem de 1.000 quilômetros, o Nonô Pereira conseguiu um Ford Galaxie emprestado de uma revendedora de Ponta Grossa (PR). Enchemos o bagageiro de galões de gasolina sobressalentes e fomos. Imagina o perigo.
Globo Rural: Vocês cobravam por essas palestras?
Peeten: O Clube da Minhoca não cobrava nada. O nosso princípio era “eu aprendo com você, você aprende comigo”. A cada viagem eu voltava mais convencido da necessidade de disseminar o plantio direto, porque cada região tinha problemas diferentes – e, nos Campos Gerais, com poucos anos a erosão já tinha cessado. Ter uma chuva pesada e o solo não erodir foi a maior vitória.
Globo Rural: Alguma vez o senhor quis desistir?
Peeten: Jamais, apesar de chegar em casa desanimado algumas vezes, porque era o tempo inteiro produtores batendo em minha porta por causa de problemas em suas lavouras. Muitos chegavam nervosos, associando os percalços, como aparecimento de pragas, ao plantio direto. Fomos chamados de loucos e de irresponsáveis. É até feio falar isso, mas é a realidade. Certo dia, um dirigente de um instituto renomado disse que deveríamos parar com essa “folia”. Mas, em vez de discutir, nós mostramos os nossos ensaios. Ele gostou. Aproveitamos para tirar uma foto daquele homem sorrindo com um punhado de terra e uma minhoca na mão. Virou o nosso garoto-propaganda.
Globo Rural: Ao voltar ao Brasil 50 anos depois de sua primeira vinda, como é para o senhor notar que o plantio direto mudou a agricultura do país?
Peeten: Deu certo. É gratificante. Hoje, muitos produtores brasileiros podem mostrar a sua terra como um cartão de visitas. Mas lembrem-se: nos anos 1970, estavam indo rumo ao deserto. Hoje, o Brasil tem a terra, o clima, os produtores. Nenhum país pode competir com o Brasil. Vocês vão ter que alimentar o mundo. Lembrem-se que todos também buscam água, não em sua forma líquida, mas em forma de grãos. A água é valiosa, e o plantio direto ajuda a conservá-la no solo. No entanto, tem algo muito importante que nunca deve ser esquecido: é preciso cuidar da estrutura do solo, mesmo onde há irrigação.
Globo Rural: Valeu a pena todo o esforço?
Peeten: Eu faria tudo de novo, com prazer. É muito importante que os jovens conheçam a história e preparem-se para o presente e o futuro e que os brasileiros não percam a prática do intercâmbio entre agricultores de diversos países.
Globo Rural: Se pudesse dar um conselho a um agricultor contemporâneo, qual seria?
Peeten: A mão na massa é sempre melhor do que a mão no laptop. É preciso sujar os dedos de terra.