Aos 68 anos, dona Otacília Pires das Chagas lembra de uma época em que tudo era diferente. “Nós nos criamos trabalhando na lavoura e cuidando dos animais, andando por aí no meio dos matões. Aquele tempo tinha muito verde, e a gente só saía a pé ou de carroça”.
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Nascida e criada no Faxinal Sete Saltos de Baixo, em Itaiacoca, área rural de Ponta Grossa (PR), hoje a casa dela e do marido, Antônio Pires das Chagas, de 73 anos, é o ponto de encontro dos familiares e da vizinhança na comunidade faxinalense.
Com 50 anos de casados completados neste ano, eles tiveram quatro filhos – dos quais três moram no faxinal –, oito netos e cinco bisnetos. Os almoços de domingo costumam reunir boa parte da família, e o porco na lata, com a carne cozida na própria gordura, não pode faltar.
Os suínos são criados livremente na área, assim como galinhas e cavalos. Nos limites do território, os mata-burros – fossos cobertos com traves espaçadas – garantem a permanência dos animais no espaço.
Os faxinais são comunidades tradicionais existentes apenas no estado do Paraná, caracterizadas pelo criadouro comunitário de animais e, em alguns casos, pelo uso coletivo da terra. A pedagoga Marilei de Fátima Ferreira, que também nasceu e cresceu no Faxinal Sete Saltos de Baixo e hoje é conselheira representante do segmento faxinalense no Conselho Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), explica que o termo “faxinal”, nesse caso, está informalmente relacionado à faxina feita pelos porcos no terreno. Por andarem livremente, acabam se alimentando de quase tudo o que encontram pelo caminho, mantendo a limpeza dos espaços comuns.
Marilei de Fátima Ferreira é conselheira representante do segmento faxinalense no Conselho Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais
Henry Milleo
Os faxinais foram reconhecidos pela lei estadual 15.673/2007, que estabelece que a territorialidade específica dos povos faxinalenses “tem como traço marcante o uso comum da terra para produção animal e a conservação dos recursos naturais”.
A legislação cita a integração de quatro características próprias dessas comunidades: a produção animal à solta em terras de uso comum; a produção agrícola de base familiar; o extrativismo florestal de baixo impacto aliado à conservação da biodiversidade; e cultura própria, solidariedade comunitária e preservação de tradições.

O levantamento mais recente aponta para a existência de 227 faxinais no Paraná. Desses, 33 são reconhecidos como Áreas Especiais de Uso Regulamentado (Aresur) e dois foram declarados, em junho deste ano, Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) pelo governo federal no município de Pinhão.
Com mais de 2.500 hectares no total, as reservas federais visam à preservação de áreas florestais da Mata Atlântica, com destaque para as araucárias, e o modo de vida tradicional faxinalense de cerca de 60 famílias que habitam a região. A comercialização do pinhão é uma das principais fontes de renda nessas áreas, que também abrigam espécies ameaçadas de extinção.
“A criação das reservas objetiva a preservação da biodiversidade, mas, em especial, a conservação das práticas tradicionais do modo de vida dessas comunidades, baseado na conexão com a natureza”, ressalta Walter Steenbock, analista ambiental e gerente regional sul do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
O reconhecimento por parte do governo federal atende a uma reivindicação histórica das comunidades tradicionais faxinalenses da região, organizadas pela Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF) e pela Rede Puxirão, que há cerca de 20 anos lutam pelo reconhecimento e proteção desses territórios.
Também com o intuito de proteger os faxinais, foram criadas a partir de 1997, pelo governo do Paraná, resoluções prevendo a delimitação de Aresur nos faxinais, que hoje totalizam 34.000 hectares. “Queremos preservar os biomas e a identidade faxinalense, um dos símbolos do mosaico de culturas paranaenses, para esse saber tradicional não ser perdido”, explica André Fialho Eiterer, geógrafo do Instituto Água e Terra (IAT) na Divisão de Unidades de Conservação da Gerência de Áreas Protegidas.
Por meio desse dispositivo, recursos do ICMS Ecológico são direcionados às prefeituras, que ficam responsáveis por liberar o dinheiro para ações voltadas às comunidades. Eiterer comenta que entre as ações estão a construção e reforma de mata-burros e instalação de cercas, instrumentos necessários para manter os animais nas áreas. O trabalho é feito pela própria comunidade, em puxirão, ou seja, mutirão.
Com aproximadamente 14% das comunidades amparadas pela criação de reservas federais e de áreas de proteção estaduais, os faxinalenses lutam para manter a identidade e os saberes tradicionais no campo. O professor Roberto Martins de Souza, do Instituto Federal do Paraná (IFPR), pesquisa os faxinais desde 1997.
O levantamento mais recente dos povos faxinalenses no estado foi feito por ele, em conjunto com a APF, entre 2007 e 2009. Ele destaca que há configurações diferentes entre os faxinais, mas todos preservam o criadouro comunitário e a conservação de florestas.
As principais atividades agrícolas desenvolvidas nas comunidades são a extração da erva-mate e do pinhão e, com menor representatividade na geração de renda, as lavouras cultivadas no sistema de agricultura familiar, como milho, feijão e soja.
Essas, por sua vez, são feitas em áreas localizadas, em sua maioria, fora do território do criadouro comunitário. A criação dos animais é voltada à subsistência, mas em alguns casos há venda de carne e derivados.
A estimativa é de que em torno de 4.000 famílias vivam em faxinais atualmente, número que representa uma queda de 60% em 15 anos
Henry Milleo
O levantamento conduzido pelo professor Roberto de Souza entre 2007 e 2009 apontou para um número aproximado de 10.000 famílias, ou 40.000 pessoas, vivendo nos faxinais. Hoje, a estimativa é que o total de famílias deve girar em torno de 4.000, uma queda de 60% em 15 anos.
Somente na região de Ponta Grossa, até por volta de 2015, eram sete faxinais. Atualmente, existe apenas um. “A essência dos faxinais se mantém, mas face a muitas ameaças”, adverte.
O professor ressalta que os faxinalenses são pessoas vulneráveis do ponto de vista econômico e social, o que facilita a quebra de uma parcela do sistema. “É importante entender que o faxinal é de uso comum, mas a propriedade é privada. Isso significa que as áreas fazem parte do mercado de terras para serem adquiridas, e o crescimento do agronegócio, com lavouras de soja e plantações de pínus e eucalipto, têm avançado nesse cenário”, avalia.
Segundo Marilei, que também faz parte da Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), a presença de chacareiros que adquirem áreas na comunidade é um dos maiores problemas. “Eles chegam com uma concepção de modo de vida urbana, não de pensar no coletivo como é o território faxinalense”, afirma.
Ela explica que, por meio de definição em acordo comunitário e protocolos de consulta, o dono de uma área no faxinal localizado em Ponta Grossa, por exemplo, só pode fechar 20% do espaço, sendo o restante de uso coletivo. “É difícil alguém que não conhece a vida no faxinal entender isso”, lamenta.
Os conflitos nessas comunidades tradicionais mantêm o Ministério Público do Paraná e a Defensoria Pública atentos. De acordo com a defensora pública Camille Vieira da Costa, coordenadora do Núcleo de Promoção de Igualdade Étnico-Racial da Defensoria Pública do Paraná, o trabalho consiste em atender sob demanda essas comunidades. “A Defensoria atua como um órgão fiscalizador, respeitando o protagonismo dos faxinalenses, promovendo direitos, oficiando e conversando com prefeituras”, explica.
Camille reforça que há áreas sob pressão, incluindo conflitos por disputa de terra, desentendimento com fazendeiros, empresas e até mesmo regras internas. Há ainda vários relatos de conflitos envolvendo ameaças a lideranças dessas comunidades.
A luta para manter vivos os saberes tradicionais dos faxinais e as práticas produtivas em harmonia com a natureza também esbarra no avanço da modernidade. Vários faxinalenses moram na comunidade, mas acabam trocando o trabalho na lavoura e a criação de animais por empregos nas cidades próximas. Dessa maneira, os mais jovens nem sempre querem ficar e dar continuidade à atividade rural.
Como no caso do aposentado André Ferreira de Andrade, de 66 anos. Nascido na área rural e acostumado à lida na roça desde criança, morou na cidade e retornou para o campo há 14 anos, quando comprou uma área no Faxinal Sete Saltos de Baixo. “Cuido da criação, mas não tenho mais lavoura. A comida dos animais é comprada, porque não tenho área para plantar”, conta.
A casa de Otacília e Antônio Pires das Chagas reúne familiares e amigos do Faxinal Sete Saltos de Baixo, em Ponta Grossa (PR)
Henry Milleo
Ele tem familiares no faxinal e diz que não pretende mais sair do local. Como a esposa e os filhos, netos e bisnetos ficaram na cidade, não tem ideia do que será o futuro da parte dele na comunidade
Na família da dona Otacília e do seu Antônio das Chagas, há netos e bisnetos que vivem na cidade. “A gente quer que o faxinal continue, mas não sei se os mais novos terão essa vontade”, comenta Antônio.
Atualmente, o casal tem a aposentadoria como renda principal. A lavoura de milho, com colheita mecanizada em área alugada, serve para alimentar os 26 porcos e as galinhas. Uma mula, assim como os cavalos do filho, formam o grupo de animais da família que circula no criadouro comum.
Outro saber tradicional dos faxinalenses mantido pelo casal é a realização de festas religiosas em casa. Todo último domingo do mês de agosto acontece a festa de São Sebastião. Neste dia, a sala com o altar dedicado ao santo é aberta aos visitantes. Otacília lembra que a celebração começou com o pai dela e acontece há cerca de 40 anos.
Comunidades faxinalenses mantêm viva a tradição da realização de festas religiosas
Henry Milleo
Marli do Rocio das Chagas Ferreira, uma das filhas do casal, é a líder da comunidade de Sete Saltos de Baixo. Ela e o marido moram no faxinal e os filhos, já adultos, vivem numa área rural próxima. “Tenho lembranças boas, a gente saía da escola e ia direto para a roça”, comenta. Ela também tem dúvidas de que os mais novos permaneçam devido à necessidade de estudar e trabalhar.
Em frente à casa dos avós, no faxinal, onde participava das festas e bailes na infância, ela lamenta o abandono da moradia. “Minha mãe viveu nessa casa, gostaria que ela fosse reformada, que ficasse para a história.
Mas isso não depende só da gente.” Para Marilei, há necessidade de uma educação no campo voltada ao fortalecimento da comunidade faxinalense, da mesma maneira que ocorre com outros povos tradicionais, como os quilombolas e os indígenas. Ela acredita que esse é um instrumento crucial para dar visibilidade a esse modo de vida, com viés cultural, ambiental e territorial.
Os faxinais contam com um sistema alternativo de produção agrícola, em que os moradores têm a posse de seus bens, dos animais e das plantações, mas a terra é coletiva. No Faxinal Sete Saltos de Baixo, em Ponta Grossa, são 106 hectares na área definida como Aresur, onde vivem em torno de 55 famílias e mais 20 chacareiros.
A criação de porcos gera renda para uma parte dos moradores, que comercializam produtos artesanais como a carne de lata e o torresmo.
No Faxinal Sete Saltos de Baixo, criação de porcos envolve parte dos moradores, que vendem produtos artesanais como a carne de lata e o torresmo
Henry Milleo
No Faxinal Saudade Santa Anita, que fica em Turvo, município da região centro-sul do Paraná, a configuração é diferente e o cultivo de erva-mate é a principal atividade agrícola. Com uma área total de aproximadamente 900 hectares definida como Aresur desde 2013, a comunidade concentra 70 famílias.
O local conta com área de criadouro de uso comum e o cultivo da erva-mate é feito no sistema sombreado nas florestas de araucária.
De acordo com Dimas Gusso,uma das lideranças da comunidade e integrante da APF, a produção, na última safra, girou em torno de 100.000 arrobas de erva-mate certificada. Todo o processo de cultivo e colheita é feito por faxinalenses, na maioria jovens. “É uma alternativa de renda para eles, que com isso permanecem na comunidade”, analisa.
A história de Dimas está ligada aos faxinais do Paraná desde a geração dos seus bisavós. “Manter as comunidades é um desafio. A Aresur contribui, mas não é suficiente”, desabafa.
Na opinião dele, deveria haver mais proteção jurídica, com planos gestor e de manejo do território, além de um posicionamento do estado para garantir a implantação desses instrumentos.