“O coco que cai da palmeira já tem dona, já tem chão. É a mão da quebradeira, que alimenta o sertão”, descreveu o maranhense Zeca Baleiro ao cantar o trabalho nas florestas de palmeiras de babaçu, um tipo de coco típico do Norte e Nordeste do Brasil, mantido pelo extrativismo e pela agricultura familiar liderada por mulheres.
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Reconhecidas como “rainhas do babaçu”, elas têm uma árdua rotina de coleta e beneficiamento do fruto, que, além de gerar renda, é motivação para se manterem na luta pela segurança alimentar, preservação da floresta e permanência na zona rural.
A palmeira nativa pode atingir até 30 metros de altura e cresce espontaneamente em áreas de transição entre os biomas Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, especialmente na região do Matopiba — que abrange partes de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
As amêndoas são usadas na culinária e na produção de cosméticos. Já a casca do coco é aproveitada para fazer carvão e outros produtos. O fruto também tem propriedades reconhecidas pela medicina popular e por estudos científicos.
Historicamente, a quebra do coco é feita por mulheres, mas, nos últimos anos, os homens foram inseridos na cadeia produtiva, ajudando no beneficiamento e transporte de cargas, antes feito apenas por burros e jumentos. Os jovens também fazem parte de projetos mais rentáveis, como as biojoias, que são peças de artesanato feitas de partes do babaçu e que atraem turistas.
“A gente aproveita tudo. Do mesocarpo, que é a polpa, tiramos a massa de coco, que serve para fazer bolos, mingau, biscoitos para consumo próprio e vendas em feiras e para programas sociais. Também há a extração do óleo da amêndoa, que tem mais valor”, descreve a quebradeira Helena Gomes, do município de Esperantina, no Piauí.
Aos 55 anos, ela conta que a maior parte de sua vida foi dentro dos babaçuais, o que a motivou a participar de movimentos de proteção às palmeiras. Ela quebrou seu primeiro coco aos 7 anos, junto de sua mãe, que exercia a atividade.
Para sua família de 12 irmãos, a vida foi dura. O sustento era todo da agricultura familiar nos quintais de casa, entre legumes e cereais, enquanto o coco era garantia de um extra. “Há 20 anos, o preço era ruim, pois só quem comprava o coco era o patrão, o dono da terra. Com a reforma agrária, a gente foi conseguindo os títulos de posse, o que favoreceu nosso sustento”, frisa Helena. Segundo a quebradeira, a luta pelo território é uma das principais bandeiras do movimento do babaçu no Brasil.
Hoje, os preços melhoraram, mas as mudanças climáticas e o avanço das monoculturas em decorrência do desmatamento pressionam a produtividade. Atualmente, cada palmeira dá de dois a cinco cachos carregados de coco babaçu se for uma região preservada com mais árvores adensadas. Em média, no Piauí e no Maranhão, se quebram 10 quilos de coco ao dia, sendo que o quilo é comercializado por R$ 7 em feiras livres e junto a cooperativas.
O manejo é totalmente manual. Somente os cocos que já caíram são coletados (sem retirar o cacho da árvore), e o uso de varas é permitido para a retirada de cocos maduros, após a fase da florada. As safras costumam acontecer entre agosto e dezembro, período em que a coleta ocorre a cada 15 dias.
Para o beneficiamento do coco, as quebradeiras foram evoluindo com maquinário de moagem para extrair o óleo, ou mesmo produzir a farinha e o carvão.
Quebradeiras transportam o coco recolhido com o auxílio de burros e jumentos
Divulgação/MQICB
Nos anos 1980, o coco representava mais de 80% da renda familiar dessas mulheres. Com o tempo, surgiram alternativas com os quintais produtivos cultivados com culturas como arroz, milho e feijão para autoconsumo e para venda a programas públicos de alimentação. Mas os desafios não diminuíram.
Ednalva Ribeiro, quebradeira de coco do município de Beco do Papagaio, no Tocantins, se emociona ao falar de uma trajetória de mais de cinco décadas na atividade. “Lembro que fui comer meu primeiro ovo inteiro depois de me casar, aos 18 anos, porque antes minha mãe precisava dividir a proteína entre todos os filhos”, conta à reportagem enquanto bebe um gole d’água para desembargar a voz emocionada.
Ednalva e Helena participam do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) em seus estados. A organização foi criada em 1991 para estimular a atividade, ao passo que debate pautas como a regularização fundiária e preservação ambiental. Hoje, são 350.000 mulheres associadas à entidade.
“Quebrar coco não é uma profissão, é um modo de viver”, diz Maria Alaídes Alves de Sousa, quebradeira em Lago do Junco, no Maranhão, onde está a maior parte dos babaçuais do país. A líder nacional do MIQCB está se preparando para defender a proteção de babaçuais na Conferência do Clima, a COP30, que acontece em novembro, em Belém (PA).Ela pretende mostrar que as quebradeiras são guardiãs da floresta e protetoras da biodiversidade.
Entre uma reunião e outra, Alaídes atende a Globo Rural. Sua agenda envolve articulações por decretos de regularização fundiária e propostas para o plano de manejo dos babaçuais, que ela defende como “matas ciliares que protegem as fontes de água do Nordeste”. “As palmeiras de babaçu são nossas mães, e o coco é nossa fonte de renda”, diz a líder.
Entre os problemas que a comunidade de produtoras vem enfrentando estão o cerceamento de acesso aos babaçuais e falta de mobilização legal e política para garantir direitos, renda e autonomia, como aponta um relatório publicado este mês pela ActionAid Brasil. “A expansão da fronteira agrícola tem gerado diferentes disputas”, diz o relatório. Por isso, a entidade recomenda que haja debate e atuação pública para estimular o papel das quebradeiras.
As quebradeiras também alertam para o uso intensivo de agrotóxicos por meio da pulverização aérea e a ausência de planos de manejo compatíveis com o extrativismo. Somados, esses desafios têm gerado conflitos fundiários, contaminação das águas e ameaça às sementes crioulas — muitas já em risco de desaparecimento.
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“A sociobiodiversidade vale mais do que um, dois bois, mas parece que ninguém enxerga. E quando não tem plano de manejo, o babaçu vira mato para ser limpo com veneno. Por isso, não lutamos só pelo coco, mas por tudo que existe nas terras onde ele nasce”, ressalta Maria Alaídes.
Para Ednalva, que lidera a regional do MIQCB no Tocantins, a fixação na terra está diretamente ligada ao babaçu em pé. “É preciso dar um basta nas derrubadas, caso contrário, em cinco a seis anos, as árvores podem acabar”, destaca.
Ednalva tem 14 irmãos, “todos criados com dinheiro do babaçu e quebrando coco”, gosta de enfatizar. “Seguimos em frente, com a floresta nos guiando e com a certeza de que o equilíbrio do clima depende do que fazemos no dia a dia: quebrar, coletar, preservar”, conclui Alaídes.