
A qualidade de vida no campo não é garantida nos municípios mais ricos do agro no Brasil, especialmente para trabalhadores rurais e pequenos produtores. Nos 50 municípios com os maiores PIBs agropecuários do país, desenvolvimento social e gestão pública apresentam assimetrias que impactam a inclusão produtiva e a sustentabilidade, aponta pesquisa inédita da organização Agenda Pública (AP). (veja gráfico abaixo)
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“O Brasil é uma potência mundial na produção de alimentos. É fundamental que a riqueza gerada nos municípios do agro se converta em bem-estar concreto para as populações locais. Avaliar a qualidade do desenvolvimento é essencial para direcionar os esforços das prefeituras e os investimentos das empresas rumo a um modelo sustentável”, afirmou o diretor-executivo da AP, Sérgio Andrade.
Das 50 cidades, 31 estão no Centro-Oeste, região dominada pelo cultivo de grãos e pela pauta exportadora. Outras 11 estão no Nordeste, onde há um histórico de déficits de desenvolvimento regional, acesso a serviços públicos e capacidades institucionais, ao passo que cresce a fronteira agrícola Matopiba – acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, lembra o diretor.
Foram monitoradas seis variáveis – educação, saúde, infraestrutura, proteção social, desenvolvimento rural e qualidade da gestão – para calcular um índice de bem-estar social, com notas de zero a um. O desempenho médio das 50 cidades foi de 0,48, classificado como “médio”. Nenhuma superou 0,6, faixa considerada “alta”, segundo a pesquisa Agro & Condições de Vida.
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Cascavel (PR) obteve o maior índice, com 0,57, enquanto Correntina (BA) registrou 0,42, a menor nota. “Nem o tamanho da economia agropecuária, nem a população explicam de forma robusta o desempenho nos indicadores”, destaca o estudo divulgado em julho.
A conclusão reflete o cenário macroeconômico do Brasil, que historicamente foi determinado por exportações de commodities, segundo o professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Renato Alves de Oliveira, especialista em economia rural. O debate central, diz ele, é o de geração de políticas públicas eficazes, especialmente no campo, que tende a parecer que absorve o dinheiro do agronegócio.
O coordenador concorda e destaca que a qualidade da gestão pública é mais determinante que o porte econômico do setor para explicar os resultados. Cerca de 25% da variação no desempenho geral pode ser atribuída a esse fator. Municípios mais organizados administrativamente e com maior capacidade institucional conseguem converter melhor a riqueza do agro em qualidade de vida, destaca a pesquisa.
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Na avaliação da gestão pública, foram considerados endividamento, poupança corrente, liquidez, transformação digital, transparência e existência de ouvidorias. A média foi de 0,53, nível intermediário. Campos de Júlio (MT), com mais de 200 mil hectares de grãos, marcou 0,78, obtendo alto desempenho. Já Santana do Mundaú (AL), com 11,3 mil habitantes e PIB de cerca de R$ 1,4 bilhão – 87,9% do agro – ficou na última posição.
O levantamento aponta um descompasso relevante entre a geração de riqueza e o desenvolvimento social e institucional. Saúde, infraestrutura e gestão têm resultados relativamente melhores, enquanto educação, desenvolvimento rural e proteção social enfrentam desafios significativos. A análise por variável mostra o pior desempenho em educação. Balsas (MA), polo agropecuário do Matopiba, teve o menor índice. Já Rio Verde (GO), “capital da soja”, liderou com 0,59 – ainda insuficiente para ser classificado como alto desenvolvimento.
“O baixo desempenho em educação reflete déficits históricos na oferta de ensino de qualidade em áreas rurais. Superar essa lacuna é essencial para estimular inovação, adotar tecnologias sustentáveis e garantir a sucessão geracional na agricultura”, afirma o documento.
A pesquisa também classificou os municípios por índice de desenvolvimento rural, ranking que mapeou a quantidade de estabelecimentos agropecuários liderados por agricultores familiares, além de estrutura e qualidade dos locais. Também esteve no radar os níveis de produtividade, de acesso à tecnologia e assistência técnica. A conclusão é similar: maiores divisas agropecuárias não se converteram na melhoria das zonas rurais e inclusão produtiva a ponto de gerar competição justa.
Para obter aos resultados, os pesquisadores cruzaram dados de dez fontes públicas, como o Censo Agro 2017 e o FNDE, e calcularam o Índice de Desenvolvimento Rural (de zero a um), que considera número de estabelecimentos de agricultores familiares, produtividade das lavouras, uso de tecnologia, assistência técnica e presença de jovens no campo.
Correntina (BA) foi a que obteve o pior desempenho na pesquisa Agro & Qualidade de Vida
Divulgação/Prefeitura de Correntina
No Centro-Oeste, apesar de a soja dominar receitas e exportações, pequenos agricultores ainda enfrentam baixa produtividade. Em Sorriso (MT), por exemplo, um dos maiores PIBs do agro, o desempenho em desenvolvimento rural é dos mais baixos. Com exceção de Sapezal (MT), que lidera ambos os rankings, todos os outros nove municípios com maior PIB agropecuário têm desempenho inferior no indicador.
Andrade lamenta que mais da metade dos municípios nem sequer tenha alcançado notas médias de 0,3, o que confirma a hipótese do estudo: quanto mais desconectados dos centros urbanos, mais a população rural é marginalizada. Apenas seis municípios superaram 0,40; nenhum chegou a 0,60.
“A baixa nota geral evidencia um desequilíbrio entre geração de riqueza e capacidade local de sustentar um desenvolvimento rural estruturado”, diz Andrade. “A riqueza do agro sozinha não garante melhorias estruturais e sociais nos territórios.”
Segundo o estudo, mesmo nos municípios de maior destaque econômico no agro, a sustentabilidade da produção ainda caminha a passos lentos, assim como a valorização do trabalhador rural, que deixa a desejar.
“Gera-se riqueza, mas ela não é distribuída ou reinvestida em bem-estar”, diz o professor da UEPG. Isso acontece pela concentração da riqueza no agronegócio nos modos atuais, que é dominado por grandes grupos econômicos, com alta mecanização, o que leva o dinheiro a circular fora do município, explica Oliveira. Para ele, jovens, mulheres, agricultores familiares são excluídos dessa cadeia mais lucrativa, determinando um “descolamento entre o Brasil do agronegócio e o Brasil real”.
O coordenador da pesquisa, Sérgio Andrade, adiciona que os trabalhadores rurais também são marginalizados em bem-estar e desenvolvimento humano, apesar de contribuírem fortemente para a balança comercial dos Estados.
Como próximo passo, o diretor da Agenda Pública pretende apresentar os resultados da pesquisa com recomendações de governança pública e desenvolvimento sustentável para as prefeituras dos municípios avaliados, além de autoridades federais para que políticas públicas possam ser repensadas, disse Andrade.
Condições de vida no Campo
Valor